A
pouco mais de cem dias das eleições a rotatividade na política brasileira
é
tão intensa que fica difícil acompanhar o sopão das siglas que se misturam.
por: Saul Leblon
A pouco mais de cem dias das eleições de
outubro a rotatividade na política brasileira é tão intensa que fica difícil
acompanhar o sopão das siglas se misturam pela manhã para se dissociarem à
noite.
O ziguezague forma um caldeirão desprovido de qualquer
coerência retrospectiva ou prospectiva, para não falar de referencias de
somenos importância, como história, ideologia, programas ou projetos de nação.
O cenário político estilhaçado é um dos gargalos à
continuidade do desenvolvimento brasileiro, que requer o lastro de amplas
maiorias para seguir em frente.
Hoje, é essa lava de interesses incandescentes que modela a
composição e a lógica do Congresso brasileiro.
Vinte siglas se digladiam ali num jorro desordenado a
equiparar a coerência programática de qualquer governante ao desafio de
conduzir um trem longe dos trilhos.
Todos os governantes e todos os partidos são reféns dessa
montanha russa desengonçada que compõe o sistema político brasileiro.
O sobe e desce abrupto nos dias que correm tem provocado
sugestivas manifestações de enjôo e indigestão.
O Prefeito do Rio, Eduardo Paes, por exemplo.
Ex-demo, ele classificou de ‘bacanal’ a possível junção
entre PMDB, seu atual partido, e o PSDB, na disputa pelo governo do
Estado.
Dias antes, fora a vez de a palavra ‘suruba’ dar o ar da
graça no noticiário, para classificar o apoio do PSB ao PT na mesma disputa
fluminense. O desabafo veio então do deputado federal pelo PSB, ex-verde,
Alfredo Sirkis.
Beirando o despudor em relação ao eleitorado, ao contribuinte
e à democracia, o presidenciável Aécio Neves esponjou-se nesse ambiente
carregado de cenas explícitas de promiscuidade.
O tucano exortou os convivas a um comportamento que ilustra o
seu conceito de retidão republicana e respeito ao país e ao povo: ‘Suguem mais
um pouquinho e depois venham para o nosso lado’, disse esse que se anuncia um
cruzado mudancista na vida política nacional.
A sucção tem funcionado bem no seu nariz, mais precisamente
em São Paulo, onde Alckmin apunhala Serra e ‘aspira’ Kassab, do PDS --que apóia
Dilma-- para candidato a senador, na vaga do PSDB.
Foi no âmbito desse corso financiado pelo dinheiro
privado –com todos os complementos daí decorrentes-- que a
discussão sobre a ‘corrupção petista’, catalisada pelo julgamento da AP 470,
assumiu contornos de um imenso biombo.
Savonarolas de biografias inflamáveis e togas coléricas
cerraram fileiras para fazer desse episódio uma nuvem de fumaça capaz de
desviar a atenção daquilo que o circunstanciava e decifrava: a urgência de uma
reforma política para libertar a democracia da subordinação a interesses
que se impõem à revelia das urnas.
Alertas como os feitos atualmente por dirigentes do PT e
membros do governo --que advertem para a disseminação do estigma
conservador, que colou no PT o carimbo de corrupção -- são bem-vindos.
Mas correm o risco de perder a força renovadora que carregam,
sempre que cederem lugar ao lamento reiterativo, em detrimento da mobilização
por uma Constituinte destinada a promover uma mudança efetiva na política do
país.
Lula, em vídeo recente em defesa dessa bandeira, foi
eloquente em evocar a sua importância como um divisor na história brasileira.
“Para o Brasil continuar mudando, é preciso garantir a
legitimidade das instituições e acabar com a interferência do poder econômico
nas eleições”, afirmou reiterando que ela é ‘cada vez mais necessária e
urgente; um clamor, que nasce das ruas, que vem da sociedade’.
O ex-presidente que deixou o governo com 80% de apoio popular
pede adesão a um manifesto que pretende reunir 1,5 milhão de assinaturas para
propor ao Congresso Nacional a convocação de uma Constituinte, exclusiva e
soberana, com essa finalidade.
A manifestação é convincente e ilustrativa da
centralidade que a radicalização da democracia passou a ocupar na visão petista
do que é prioritário – indispensável-- para destravar o passo seguinte
desenvolvimento brasileiro.
Mas carece, ainda, de um lastro mobilizador efetivo.
A ausência desse requisito reflete certa prostração do campo
progressista, que hesita em transformar o agiornamento histórico de suas
reflexões em mobilizações de massa, necessárias para alterar, de fato, a
correlação de forças que está na origem dos impasses brasileiros.
Intervenções como a de Lula terão a força requerida pelo
objetivo a que se propõem, quando forem parte de um engajamento prático.
Uma determinação feita de agendas, comícios e caminhadas,
claramente traduzidos em locais e datas que ofereçam alternativas à
participação organizada de amplas esferas da sociedade, para além da franja dos
iniciados.
Não apenas isso.
É indispensável explicitar o vínculo entre democracia e
superação da encruzilhada do desenvolvimento do país.
Portanto, entre reforma política e retomada do crescimento
brasileiro.
Trata-se de rejeitar a mística conservadora de uma
estabilidade em si da economia, fruto da terceirização dos destinos da
sociedade aos impulsos dos ‘livres’ mercados.
Em primeiro lugar, a idéia de um capitalismo em equilíbrio é
uma contradição nos seus próprios termos.
No capitalismo, a estabilidade reivindicada pela ortodoxia
equivale, na verdade, à paz salazarista dos cemitérios, na qual o povo faz o
papel de defunto e o dinheiro grosso, o de coveiro.
A retomada do crescimento por aí tem outro nome: concentração
de renda; expropriação de direitos trabalhistas; regressão social e alienação
do patrimônio público.
É o oposto do compromisso com a melhoria efetiva da qualidade
de vida das amplas massas brasileiras.
Só há uma receita econômica compatível com esse pacto:
aquela que entende o desenvolvimento como um processo histórico de
transformação da sociedade, o que implica superar estruturas existentes e criar
outras novas.
Isso não se faz a frio.
Ao contrário do que sugerem os dogmas neoliberais
apregoados pelo jornalismo isento, quem determina a coerência macroeconômica
nesse processo é a correlação de forças de cada época.
Dito de forma muito clara: para romper os torniquetes do
dinheiro grosso é necessário poder; e poder hoje no Brasil implica subtrair
espaços do mercado em favor da democracia.
Quem pode propiciar isso é uma reforma política que
amplie os canais de participação popular e assegure maior legitimidade à
representação da sociedade.
Lula disse em recente encontro de blogueiros, em maio, que
ela virá das ruas.
E ela só virá das
ruas se Lula estiver nas ruas.
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