29/AUG/2014
Nove mestres da USP
e
William Bonner
O dia em que William Bonner traçou o perfil do telespectador do Jornal Nacional para nove pesquisadores da USP: são Homers Simpsons |
William Bonner está
assumindo o papel de
garoto-propaganda da
criminalização da política (reprodução)
Em artigo escrito em 2005, Laurindo Lalo Leal
Filho conta um episódio em que professores da USP acompanham a produção do Jornal Nacional. Retomado,
a ótica da passagem retratada em detalhes pelo sociólogo e professor de
jornalismo da ECA-USP é ainda atual.
Durante uma reunião de pauta, Laurindo revela
a escolha superficial de William Bonner para as reportagens que,
posteriormente, são transmitidas pelo jornal carro-chefe da Rede Globo. Com
ela, o constrangimento é vivido e acompanhado por nove mestres da Universidade.
Como se não bastasse a explícita busca pelo
apelo da opinião pública e a dispensa de notícias de impacto social e político,
Bonner explicou aos professores e pesquisadores o perfil do telespectador médio
do Jornal Nacional: são Homers Simpsons, contou o âncora e editor-chefe.
Por Laurindo Lalo Leal
Filho*
Perplexidade
no ar. Um grupo de professores da USP está reunido em torno da mesa onde o
apresentador de tevê William Bonner realiza a reunião de pauta matutina do
Jornal Nacional, na quarta-feira, 23 de novembro.
Alguns
custam a acreditar no que vêem e ouvem. A escolha dos principais assuntos a
serem transmitidos para milhões de pessoas em todo o Brasil, dali a algumas
horas, é feita superficialmente, quase sem discussão.
Os professores estão lá a convite da Rede
Globo para conhecer um pouco do funcionamento do Jornal Nacional e algumas das
instalações da empresa no Rio de Janeiro.
São nove, de diferentes faculdades e
foram convidados por terem dado palestras num curso de telejornalismo promovido
pela emissora juntamente com a Escola de Comunicações e Artes da USP.
Chegaram
ao Rio no meio da manhã e do Santos Dumont uma van os levou ao Jardim Botânico.
A conversa com o apresentador, que é também
editor-chefe do jornal, começa um pouco antes da reunião de pauta, ainda de pé
numa ante-sala bem suprida de doces, salgados, sucos e café.
E sua primeira
informação viria a se tornar referência para todas as conversas seguintes.
Depois de um simpático ‘bom-dia’, Bonner informa sobre uma pesquisa realizada
pela Globo que identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional.
Constatou-se que ele tem muita dificuldade
para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como BNDES,
por exemplo. Na redação, foi apelidado de Homer Simpson. Trata-se do simpático
mas obtuso personagem dos Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior
sucesso na televisão em todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar
no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. É preguiçoso e tem o raciocínio
lento.
A explicação inicial seria mais do que
necessária. Daí para a frente o nome mais citado pelo editor-chefe do Jornal
Nacional é o do senhor Simpson. ‘Essa o Homer não vai entender’, diz Bonner,
com convicção, antes de rifar uma reportagem que, segundo ele, o telespectador
brasileiro médio não compreenderia.
Mal-estar entre alguns professores. Dada a
linha condutora dos trabalhos – atender ao Homer -, passa-se à reunião para
discutir a pauta do dia. Na cabeceira, o editor-chefe; nas laterais, alguns
jornalistas responsáveis por determinadas editorias e pela produção do jornal;
e na tela instalada numa das paredes, imagens das redações de Nova York,
Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, com os seus representantes. Outras
cidades também suprem o JN de notícias (Pequim, Porto Alegre, Roma), mas elas
não entram nessa conversa eletrônica. E, num círculo maior, ainda ao redor da
mesa, os professores convidados. É a teleconferência diária, acompanhada de
perto pelos visitantes.
Todos recebem, por escrito, uma breve
descrição dos temas oferecidos pelas ‘praças’ (cidades onde se produzem
reportagens para o jornal) que são analisados pelo editor-chefe. Esse resumo é
transmitido logo cedo para o Rio e depois, na reunião, cada editor tenta
explicar e defender as ofertas, mas eles não vão muito além do que está no
papel. Ninguém contraria o chefe.
A primeira reportagem oferecida pela ‘praça’
de Nova York trata da venda de óleo para calefação a baixo custo feita por uma
empresa de petróleo da Venezuela para famílias pobres do estado de
Massachusetts.
O resumo da ‘oferta’ jornalística informa que a empresa
venezuelana, ‘que tem 14 mil postos de gasolina nos Estados Unidos, separou 45
milhões de litros de combustível’ para serem ‘vendidos em parcerias com ONGs
locais a preços 40% mais baixos do que os praticados no mercado americano’. Uma
notícia de impacto social e político.
O editor-chefe do Jornal Nacional apenas
pergunta se os jornalistas têm a posição do governo dos Estados Unidos antes
de, rapidamente, dizer que considera a notícia imprópria para o jornal. E segue
em frente.
Na
seqüência, entre uma imitação do presidente Lula e da fala de um argentino,
passa a defender com grande empolgação uma matéria oferecida pela ‘praça’ de
Belo Horizonte.
Em Contagem, um juiz estava determinando a soltura de presos
por falta de condições carcerárias. A argumentação do editor-chefe é sobre o
perigo de criminosos voltarem às ruas. ‘Esse juiz é um louco’, chega a dizer,
indignado. Nenhuma palavra sobre os motivos que levaram o magistrado a tomar
essa medida e, muito menos, sobre a situação dos presídios no Brasil.
A defesa
da matéria é em cima do medo, sentimento que se espalha pelo País e rende
preciosos pontos de audiência.
Sobre a
greve dos peritos do INSS, que completava um mês – matéria oferecida por São
Paulo -, o comentário gira em torno dos prejuízos causados ao órgão. ‘Quantos
segurados já poderiam ter voltado ao trabalho e, sem perícia, continuam
onerando o INSS’, ouve-se.
E sobre os grevistas? Nada.
De Brasília é oferecida uma reportagem sobre
‘a importância do superávit fiscal para reduzir a dívida pública’. Um dos
visitantes, o professor Gilson Schwartz, observou como a argumentação da
proponente obedecia aos cânones econômicos ortodoxos e ressaltou a falta de
visões alternativas no noticiário global.
Encerrada
a reunião segue-se um tour pelas áreas técnica e jornalística, com a inevitável
parada em torno da bancada onde o editor-chefe senta-se diariamente ao lado da
esposa para falar ao Brasil.
A visita inclui a passagem diante da tela do
computador em que os índices de audiência chegam em tempo real. Líder eterna, a
Globo pela manhã é assediada pelo Chaves mexicano, transmitido pelo SBT. Pelo
menos é o que dizem os números do Ibope.
E no almoço, antes da sobremesa, chega o
espelho do Jornal Nacional daquela noite (no jargão, espelho é a previsão das
reportagens a serem transmitidas, relacionadas pela ordem de entrada e com a
respectiva duração). Nenhuma grande novidade.
A matéria dos presos libertados
pelo juiz de Contagem abriria o jornal. E o óleo barato do Chávez venezuelano
foi para o limbo.
Diante de saborosas tortas e antes de
seguirem para o Projac – o centro de produções de novelas, seriados e programas
de auditório da Globo em Jacarepaguá – os professores continuam ouvindo
inúmeras referências ao Homer.
A mesa é comprida e em torno dela notam-se
alguns olhares constrangidos.