Quem pode virar
o jogo político no Brasil?
Chico Menezes
Pesquisador do Ibase
Pesquisador do Ibase
Os dez últimos anos, no
Brasil, foram caracterizados pela disputa política entre dois campos
ideológicos bastante distintos. Porém, neste período, não ocorreram maiores
rupturas e as diferenças de propostas e projetos ficaram muitas vezes turvas,
escondendo o antagonismo que realmente existia.
O governo liderado pelo PT
entendeu que a única forma de se manter no poder era conciliando aqueles
interesses tão diversos e frequentemente contraditórios. Não abriu mão de sua
principal bandeira, de redução da pobreza e maior justiça social. E logrou
resultados expressivos, que possibilitaram a formação de uma nova base popular
capaz de lhe garantir de forma confortável um segundo e um terceiro mandato na
Presidência da República.
Assim, tudo parecia estar sob controle, sem risco de
grandes instabilidades.
Os acontecimentos
ocorridos a partir de junho viraram de cabeça para baixo esta aparente
calmaria. As ruas passaram a expressar um descontentamento que se alastrou de
forma contagiosa para as mais diversas cidades do país, algumas delas que nunca
haviam vivenciado antes essas mobilizações.
A rebelião manifestada nas ruas,
mais além da reivindicação específica e vitoriosa levantada pelo Movimento
Passe Livre, parece atirar em todas as direções.
Existe um não mais suportar
das condições dos serviços urbanos. Existe o clamor por melhores condições para
a saúde e a educação e a paciência esgotada para continuar esperando soluções.
Existe um forte questionamento à forma como o país se prepara para a realização
dos grandes eventos esportivos, com não aceitação de gastos, que sabemos
injustificáveis.
A isto se soma a indignação frente às medidas segregacionistas
contra os mais pobres, quando estes se encontram no caminho das grandes obras.
Existe a não aceitação do mandonismo e do colonialismo de organizações
internacionais, como a FIFA. Existe um repúdio enojado sobre as polícias
estaduais que, ao invés de defenderem os cidadãos, apontam suas miras para os
mais jovens e os mais pobres.
Existe, também, o rechaço à mídia convencional,
ao seu cinismo, às suas mentiras e tramoias.
Todas essas insatisfações são
compartilhadas intensa e velozmente, pelas redes sociais e outros mecanismos
que garantem a permanente comunicação. E tudo cabe nesta grande cesta de
descontentamentos.
Mas porque o
descontentamento é difuso, abre-se o espaço para manipulações e oportunismos.
As forças mais retrógradas, ao verem o crescimento das manifestações,
resolveram se realinhar. Abandonaram a reprovação inicial que faziam contra
aqueles que se mobilizavam e passaram a tratar o fenômeno como uma
oportunidade. Enxertaram seus temas no cardápio de descontentamentos levantados
pelos manifestantes. A questão da corrupção à frente, sem dizer como
enfrentá-la e apontando unicamente para um partido e seus componentes mais
ilustres. A distribuição de bandeiras e camisas com as cores do Brasil, em um
súbito e estranho nacionalismo.
Neste contexto manifestou-se, também, o caráter
anti-democrático de uma minoria, com intolerância e agressões a membros de
partidos políticos e de movimentos sociais.
Mas, deixando de lado o
que foi mais exacerbado, se formos buscar o denominador comum em tudo o que se
expressa nas manifestações, parece ficar clara a sensação de que a democracia
engessada do atual sistema político brasileiro mostra sinais evidentes de
esgotamento, por não pertencer ao povo, muito menos aos jovens que agora
protestam.
Esse sentimento não é um
fenômeno meramente nacional. Faz parte da enorme frustração com modelos
políticos que aceitam e fazem uso da fraude, dos acordos do toma lá dá cá, da
compra do poder e, o mais importante, da ausência de espaços para a
participação. A insatisfação com esta democracia, muitas das vezes, desabrocha
a partir de um acontecimento que parece banal ou de pequena dimensão, como o
aumento de uma tarifa de ônibus, ou uma arbitrariedade policial localizada. Mas
explode, quando surge a sensação de que o jogo é de cartas marcadas e que a
possibilidade da mudança, dentro do atual marco institucional, é muito pequena.
Estas manifestações se iniciam, tem seu auge e depois refluem. Seus efeitos
imediatos vão depender da situação específica de cada país ou localidade aonde
acontecem. Mas o vazio, a não-resposta ao que se reivindica, o deixar-esfriar,
não passam impunes. Acumula-se uma frustração que vai cobrar seu preço.
No caso brasileiro, quando
examinamos as reivindicações mais frequentes – e são muitas – que emergem das
manifestações, elas variam desde a cobrança de medidas simples, para resolverem
um problema localizado, até questões que para serem enfrentadas, supõem forte
confronto de interesses e as chamadas rupturas, até aqui ausentes de nossa
agenda política.
Reforma Agrária, Reforma Urbana, controle social dos meios de
comunicação e muitos outros pontos, absolutamente urgentes e necessários, mas
pedidos de sequer terem seus processos iniciados, exigem confronto e
ruptura para avançarem. Como avançarão? Passando pelo Congresso Nacional, com
sua atual composição? Ele é parte do problema e dificilmente conseguirá
encaminhar a solução.
Vai-se esgotando a
paciência com os arranjos e a negociata na política. O longo período de
conciliação das disputas, através da prática de varrer para debaixo do tapete
contradições inconciliáveis, parece ter seus dias contados. É claro, vai se
tentar fazer tudo voltar ao “normal”. Mas uma nova agenda se impõe para o país
e ela não poderá ser cumprida com a velha fórmula da conciliação. Por isso, o
sistema político precisa ser profundamente reformado.
A Reforma Política não
traz a garantia que sairemos do atual sistema para outro melhor. Depende,
fundamentalmente, de como será feita. E se falávamos de um novo tempo de
conflito e não conciliação, prova disso foi que bastou levantar-se a hipótese
de mudanças no sistema político, para que surgisse uma reação intransigente a
ela. Listem os nomes de quem se opõe a uma reforma política com participação
popular e teremos um claro indicador de como os campos de interesse hoje se
dividem.
Estava absolutamente
correta a proposta inicial da Reforma Política que a Presidenta Dilma
apresentou. A profundidade e abrangência das medidas para a reforma política
que o país necessita exigem mudanças constitucionais, que justificam a chamada
de uma Assembleia Constituinte com esta finalidade exclusiva.
Não deveria ser
feita pelos congressistas atuais, para ter a necessária isenção frente aos
interesses que sustentam o atual sistema político. Deveria ser composta por
pessoas eleitas a partir de seu reconhecimento público e já aqui com um
financiamento exclusivo do Estado para a realização desse processo. Assinale-se
que, ao contrário do que foi propagado pelos que se opuseram a ela, esta
proposta não foi criada pelo governo. Já há muito tempo vem sendo discutida por
especialistas e interessados no tema.
A proposta foi torpedeada
pelas forças do continuísmo e, ao que tudo indica, não haverá as condições para
retomá-la. O Plebiscito, para definir com participação social as questões a
serem consideradas na reforma política, teve a insistência do governo, mas
novamente encontrou o rechaço daqueles que mais se beneficiam com o atual
sistema. O Congresso Nacional e os partidos políticos, em sua maioria, não
aceitam o plebiscito e buscam esvaziar a própria ideia da reforma política para
a qual nunca se empenharam.
Quem pode virar o jogo? Novamente as ruas. Foi
alentador ver que os movimentos sociais colocam a reforma política como uma das
suas reivindicações principais. É preciso que seja realizado um trabalho didático
com todos os que se indignam e se rebelam frente ao atual estado de coisas,
mostrando o papel que pode desempenhar uma reforma política, nesse contexto. E
alertando para o tamanho da luta, porque estarão sendo questionados alguns dos
sustentáculos principais desse sistema.
Vejamos alguns pontos
essenciais para que a reforma política aconteça e possa cumprir seu papel. Em
primeiro lugar, a questão do financiamento público das campanhas eleitorais,
pondo fim às campanhas milionárias pagas por financiadores privados que cobram,
posteriormente, um altíssimo preço. Significaria um duríssimo golpe nas forças
conservadoras, que vem garantindo sua hegemonia através do poder econômico nas
disputas eleitorais. E que reproduz grotescamente as figuras da empresa financiadora
a definir todos os passos de seus “funcionários” parlamentares.
Um segundo
ponto, entre diversos que se colocam no âmbito da regulamentação do processo
eleitoral, é a revisão das regras de coalisões sem bases programáticas, mas
unicamente estabelecidas a partir das conveniências de formação de maioria e
minoria.
O terceiro ponto, igualmente importante, refere-se ao fortalecimento
das formas de democracia participativa e direta, cada vez mais adequadas aos
tempos atuais, considerando-se inclusive as possibilidades que se oferecem com
o maior acesso da cidadania aos meios que permitem uma crescente
interatividade.
Aliás, é pela via da
democracia direta que se pretendeu iniciar esse caminho. O plebiscito chama a
mobilização popular para garantir aquilo que nunca vai se realizar por meio do
atual Congresso Nacional. O desafio é de muito risco, mas é a única proposta
possível para ir além desta democracia de fachada. Considerando-se os limites e
as resistências com que se deparam as forças progressistas, seria ingênuo
esperar que a reforma política represente uma panaceia para a democracia
brasileira. Não se deve negligenciar, porém, o potencial democratizante para a
sociedade, caso se consiga concluir o processo com razoável êxito.
Os
movimentos e organizações sociais, os verdadeiros democratas, a esquerda
independentemente de sua filiação e os jovens que querem a mudança precisam
compreender seu papel nessa hora.
A voz das ruas pode falar mais alto.
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