Trabalha em JORNALISMO INTERATIVO
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5 de
Setembro de 2015
O jornalismo
que não vê
e se omite
Jornalista
O Brasil ficou chocado com os 84 segundos de imagens em preto e
branco que assistiu nos principais telejornais do país na sexta-feira, 28 de
agosto. Mostravam as cenas violentas de um assalto à luz do dia numa avenida
movimentada de São Bernardo do Campo, SP, quando o ladrão esmurra o vidro de um
carro, arranca a motorista que o dirigia, joga a mulher no chão e arranca com o
veículo.
Foram cenas captadas às 8h. da manhã do sábado anterior, 22, pelo
sistema de segurança da prefeitura, num trecho da avenida José Fornari, no
bairro Ferrazópolis, e divulgadas pelo jornalABCD Maior.
Repetida exaustivamente, a sequência impressiona pela brutalidade,
que todo mundo vê.
Os telejornais viram e reprisaram.
Mas, o jornalismo fracassou em sua missão básica ao não ver, ali, o
que devia ter visto, registrado e denunciado.
Vamos rever a cena captada com neutralidade pela câmera da avenida e
ecoada com insensibilidade pela imprensa brasileira...
Um homem de menos de 30 anos aproveita o trânsito parado, circunda
por trás de um Honda Fit, como se fosse cruzar a avenida, e aos 10 segundos da
gravação se volta de repente em direção à porta da motorista. Com inesperada
violência, começa a esmurrar o vidro. O carro tenta arrancar.
O primeiro murro acontece aos 15 seg. Aos 16 seg, um segundo murro.
Aos 17, o terceiro. Ele força a abertura da porta aos 18, que se abre no
segundo seguinte.
Com violência, puxa para fora a motorista, uma senhora de 64 anos, e
a joga sobre o canteiro central da avenida, aos 25 segundos. Ele toma o lugar
da motorista e arranca com o carro. Outra mulher, que estava no banco de
passageiro, consegue sair pela porta direita, pega uma bolsa caída na avenida e
vai ao encontro da amiga, caída sobre o canteiro central. Aos 59 seg, enfim, um
homem cruza a avenida ao encontro das duas mulheres, para prestar algum
socorro.
Na câmera e na consciência.
A motorista de 64 anos, a psicopedagoga Rosa Maria Costa, deslocou o
tornozelo e sofreu quatro fraturas na perna direita. O ladrão acabou capotando
o carro na Via Anchieta e, no acidente, ainda atropelou um homem de 65 anos. Um
carro parou para socorrer, o motorista desceu e o ladrão roubou o outro carro,
desaparecendo. Um fato nada estranho na Grande São Paulo, onde acontece um
roubo ou furto de carro a cada quatro minutos. Entre janeiro e julho, na maior
região metropolitana do país, 74.129 veículos foram surrupiados por bandidos.
O que mais espantou na cena de violência em São Bernardo, que todo
mundo viu, foi a cena que a imprensa não viu, não comentou ou desprezou.
Ninguém da TV, rádio ou jornal, nenhum colunista, nenhum blogueiro,
nenhum militante das ubíquas redes sociais destacou o vergonhoso espetáculo
coletivo de acovardamento, omissão, negligência e falta de solidariedade que
marcou o entorno da agressão na avenida.
Está tudo lá, gravado para sempre na câmera da TV e na consciência
envergonhada de quem tudo viu e nada fez. Ou fez errado. Como o motorista do
carro branco, provavelmente um Corolla, parado imediatamente atrás do carro
atacado pelo assaltante.
Quando o agressor desferiu seu terceiro murro na porta, aos 17 seg,
o motorista do Corolla começa a dar ré no carro. Se tivesse feito o contrário,
acelerando em direção ao atacante, que não estava armada, ele teria frustrado a
agressão e afugentado o agressor.
Em vez disso, o carro branco recua uns dois
ou três metros, lentamente. No momento em que Rosa Maria é jogada na avenida, o
Corolla vira à sua direita e desaparece de cena atrás de uma van parada ao
lado, com um motorista, também inerte, à direção.
O carro roubado, o Corolla e a van arrancam quase ao mesmo tempo,
enquanto a vítima rolava na avenida.
No canto inferior direito da tela, três homens passam pela calçada,
indiferentes ao drama das duas mulheres no canteiro central. Só aos 59 seg
aparece um homem de jaqueta preta, que atravessa a avenida para socorrer as
duas mulheres.
Durante os 84 segundos que dura a cena gravada, o que se vê e
ninguém comenta é um desfile pusilânime de indiferença, de gente que não se
importa, que não vê, não olha, não para e não comete nenhum gesto de
solidariedade.
Além da van e do Corolla que fugiram da cena do crime, outros quatro
carros, dois ônibus e um caminhão passaram pelo local, no sentido do carro
assaltado. Do outro lado da avenida, no sentido inverso, passaram 21 carros
neste curto espaço de tempo — e ninguém parou, nem por curiosidade.
Nesta sociedade cada vez mais integrada por redes sociais, cada vez
mais conectada por ferramentas como Facebook, Twitter e WhatsApp, cada vez mais
interligada por geringonças eletrônicas que deixam todo mundo plugado em todos
a todo momento, a cena brutal de São Bernardo escancara o chocante estágio de
uma civilização cada vez mais desintegrada, mais desconectada, mais
desintegrada. É uma humanidade apenas virtual, falsa, narcisista, cibernética,
egoísta, que se decompõe em pixels e se desfaz na tela fria da vida cada vez
mais distante e desimportante.
Ninho da omissão
A polícia, sempre fria e técnica, recomenda não reagir em casos de
assalto, para evitar danos maiores. No episódio deprimente de Rosa Maria,
tratava-se não de reagir, mas de defender uma vida, de proteger um ser humano,
de cessar uma agressão, de impedir um abuso, obrigação que cabe a todos e a
cada um de nós.
A reação de um, um apenas, motivaria o auxílio de outro, e mais
outro, numa sucessão de atos reflexivos de autodefesa em grupo que explicam a
evolução do homem da caverna para o abrigo solidário da civilização.
Ninguém fez isso — na hora certa, com a firmeza necessária, com a
generosidade devida, com a presteza impreterível. Esse espetáculo coletivo de
insensibilidade e de crua indiferença atropelou toda a imprensa, em suas várias
plataformas. Naufragaram até mesmo os programas e apresentadores que vivem da
violência explícita e cotidiana de nossas cidades, grandes ou pequenas, com seu
festival interminável de 'mundo cão'.
Os programas das grandes redes de TV, que cruzam as manhãs e tardes
do País com a tediosa banalidade de sangue, morte e violência do cotidiano, se
refestelaram com a caso de São Bernardo, reprisando várias vezes a cena da
avenida. Como sempre, no estilo furioso e mesmerizado de todos, despontou a
tropa de elite da truculência na TV, sob o comando de José Luiz Datena (Band),
Marcelo Rezende (Record) e Ratinho (SBT).
Aos gritos, aos berros, no jeito gritado de um e de todos, ecoaram
como de hábito a visão policial e teratológica da realidade, deixando de lado a
preocupação social de uma segurança pública falida e desarvorada pelas balas
perdidas da incompetência dos governantes.
Só esqueceram do entorno, da cena explícita de covardia e
indiferença das pessoas que testemunham, assistem, presenciam, mas não
interferem, não intervêm, não reagem.
Ninguém lembrou do exemplo de São
Bernardo para denunciar esta falsa sociedade compartilhada, mais preocupada em
seus interesses compartimentados, que nenhuma rede social humaniza ou aproxima,
a não ser virtualmente.
Um jornalismo que não vê o que é necessário, que não percebe o
contexto além do texto, descumpre a sua missão. Esconde a realidade, ao invés
de revelá-la. O repórter fiel ao seu ofício deve estar atento ao murro do
assaltante no vidro do carro. Mas deve prestar atenção maior ao Corolla branco
e aos carros que passam por ali, indiferentes ao que se vê e ao que acontece.
O bom jornalismo sabe que é nesse ninho da omissão que cresce a
violência e prospera o fascismo.