21/05/2013
Estado-mãe
Os liberais gostam de criticar o Estado-providência por ver nele o
paradigma de um funcionamento institucional da vida social que acomodaria os
sujeitos a benefícios sem responsabilidades, desprovendo-os de capacidade de
empreendedorismo e deixando-os sem coragem para assumir riscos. Tal como se
fosse uma mãe superprotetora, tal Estado produziria apenas filhos letárgicos e
sempre chorando por amparo.
É fato que há algo de verdadeiro nessa crítica ao caráter de "mãe
má" próprio ao Estado-providência. Seu único problema é que ela erra de
alvo quando procura identificar quem são, afinal, os filhos em questão. Vejam,
por exemplo, o caso brasileiro. Na verdade, eis aí um verdadeiro
Estado-providência, mas seus filhos são apenas certos setores da burguesia
nacional e da sociedade civil associada ao governo. Há dois exemplos
paradigmáticos ocorridos nas últimas semanas.
Durante os últimos anos, o governo investiu mais de R$ 1 bilhão na
reforma do estádio do Maracanã. Obra feita a toque de caixa devido ao
calendário da Copa do Mundo. Dias atrás, ficamos sabendo que um consórcio
composto pela Odebrecht e pelo onipresente empresário Eike Batista ganhou o
direito de administrar o estádio por (vejam só vocês) R$ 180 milhões pagáveis
em 30 anos. Ou seja, só em reformas o Estado, principalmente via BNDES, gastou
mais de R$ 1 bilhão para entregar a seus filhos, por menos de 20% do valor
investido, um complexo esportivo com o qual nem mesmo o mais néscio dos
administradores seria capaz de perder dinheiro.
Na mesma semana, descobrimos também que o governo paulista resolveu
inventar um cartão que dá R$ 1.350,00 para viciados que queiram se internar em
comunidades terapêuticas cadastradas. Nada de mais, à parte o Estado acabar por
financiar comunidades terapêuticas privadas, normalmente vinculadas a igrejas e
com abordagens "espirituais" de atendimento psicológico bastante
questionáveis, enquanto sucateia vários Caps (Centro de Atenção Psicossocial)
pelo Estado.
Assim caminha o paulatino abandono da capacidade governamental de
formular políticas públicas em saúde mental. Mas pelo menos alguns de seus
filhos, por coincidência com grande influência nos próximos embates eleitorais,
serão amparados.
Diante da generalização de ações dessa natureza, há de perguntar se a
crítica liberal clássica ao Estado-providência não é, no fundo, uma cortina de
fumaça que visa esconder quem são os verdadeiros protegidos. O que demonstra
como precisamos, na verdade, de uma crítica aos processos de privatização
branca do Estado brasileiro. Privatização feita à base de negócios de mãe para
filho.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP
(Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.