21/10/2013
DEMOCRACIA E VIOLÊNCIA
Editorial
Por Aldo Fornazieri
Aldo
Fornazieri – Cientista Político e professor da Escola de Sociologia e Política
Rios de tinta já foram derramados para
discutir a relação entre política e violência. Nada indica que este debate
deixe de ter futuro, pois a despeito dos virtuosos do amor e da paz, a
violência se inscreve na própria natureza humana e é uma de suas potências
universais. A primeira medida para tentar conter a violência desnecessária
consiste em compreender-lhe a natureza. O debate sobre a violência tem recebido
mais espaços na mídia, principalmente pelas recorrentes batalhas de rua que vêm
sendo travadas desde junho, marcadamente pelos confrontos entre a polícia e
manifestantes, com destaque para os Black Bloc.
Desde os primórdios da humanidade, a
violência é um meio de poder ou um código de poder. Nas sociedades primitivas,
o poder se baseava na força mesma. Como Maquiavel nos ensina nos Discursos
Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, no mundo primitivo, habitantes dispersos
em vilas agrupavam-se em cidades para se proverem de segurança contra eventuais
atacantes. Garantir uma vida segura tornou-se o primeiro bem comum da
comunidade, que houve por judicioso estabelecer os meios necessários para
provê-lo. Os fundamentos da segurança consistiam em prevenir os perigos
externos e garantir a paz interna contra as dissensões civis, o crime, o
latrocínio e a desordem.
Como enfrentar o medo dos vizinhos?
Fazendo-se temer. Surgem daí os dois fundamentos inextinguíveis do poder: o
temor, fundado na força e na violência, e a esperança de um viver pacífico,
fundado na segurança e na lei. Os primeiros líderes tinham como principal
atributo a força física e o valor moral da coragem. O mais forte era o líder. À
medida em que as sociedades as sociedades foram se tornando mais complexas, o
exercício do comando passou a exigir a presença de normas explícitas e de
instituições, configurando formas de ordenamentos políticos. Direção e comando
passaram de seu estado físico para uma existência institucional e simbólica. A
força física não era o único elemento a conferir legitimidade ao comando. A
aliança entre sabedoria e justiça, origem da virtude da prudência, passaram a
ser exigidas na escolha da liderança. Mas as cidades-Estados armazenaram a
força - estado potencial da violência – em corpos especiais de segurança, em
tribunais, em exércitos etc.
Os grandes Estados do passado e mesmo os
dos tempos modernos, foram fundados por atos que Maquiavel designa como “terror
originário”, normalmente traduzido por um ato de violência. Foi assim com
Moisés que passou no fio da espada milhares de hebreus ao voltar do Monte Sinai
e vê-los a adorar ídolos de ouro; foi assim com Ciro que se revoltou contra os
medas ao fundar o Império Persa; foi assim com Rômulo que eliminou seu irmão
para garantir a segurança de Roma; foi assim com os Estados Unidos que fizeram
a Guerra da Independência para fundarem a sua nação. O terror originário é uma
exigência mesma do caráter ambivalente dos seres humanos, definido como
natureza e como cultura, como animal e como ser racional e desejante.
Sem o medo suscitado pelo terror
originário, o poder não se constituirá adequadamente e a lei não terá a força
de codificar a violência monopolizada e legítima do Estado. A lei não terá
condições de desenvolver-se e gerar as condições de um viver civil adequado,
criando os impulsos necessários à civilização do homem e do controle da besta.
Para que perdure e exerça sua função com eficácia, o terror originário precisa
ser sempre reposto pela excelência e força de novas leis, por expurgos, por
atos exemplares, capazes de mantê-lo vivo na mente dos povos na forma do medo
do castigo.
As democracias modernas, em que pese
terem criado sistemas legais e institucionais de mediação e de solução pacífica
de conflitos, não eliminaram os estoques de força aptos a se transformarem em
violência. Max Weber bem definiu o Estado moderno como o aparato que monopoliza
o uso legal da violência física no âmbito de um território e sobre uma
população. Então, supor que o exercício do poder democrático prescinde da
violência é coisa de pessoas mal intencionadas, que não querem revelar a razão
de seus argumentos, ou de ingênuos que não sabem muito bem do que estão
falando.
Assim, ao contrário do que muitos
democratas acreditam, a violência não só destrói o poder, mas o cria também. Em
uma ordem dada, o recurso à violência expressa a falência do poder. O choque
violento ocorre para estabelecer novas relações de força que se traduzem em
novas relações de poder.
As recentes batalhas urbanas entre
polícias militares e Black Bloc, a violência crescente de grupos de jovens, são
fenômenos que precisam ser entendidos como sintomas de algo mais grave. O que
há, de fato, é uma crise de legitimidade do sistema político, uma crise de
exercício do poder, uma crise de funcionamento da democracia. À medida em que
as organizações políticas e sociais tradicionais, a oposição política e as
organizações de esquerda não conseguem apresentar alternativas à essa crise, os
movimentos anarquistas e autonomistas, usando as táticas Black Bloc, se
apresentam como a vanguarda dos protestos de rua e conseguem captar a simpatia
de milhares de jovens e de pessoas indignadas com o atual sistema político.
Se é verdade que a violência política de
rua pode não ser boa para a democracia, é preciso também olhar para o outro
lado da coisa: a crise de legitimidade e de governança, a corrupção, a volúpia
ilimitada do mercado financeiro e uma sociedade que não oferece alternativas
para milhões de jovens, também não fazem bem à democracia. A violência
dos jovens é um sintoma dessa crise. Se não percebermos isto, estaremos adotando
uma postura conservadora e a conseqüência será a reação violenta do Estado
contra as manifestações, algo que, aliás, já vem ocorrendo há bastante tempo.
Não se trata, assim, de justificar a violência, mas de perceber suas causas
reais para buscar soluções.