28/01/2014
janio de freitas
Tiro na democracia
Arma
de fogo no policiamento de manifestação pública é uma truculência que denuncia
a admissão, pelos dirigentes civis e pelos comandos policiais, de violências
fatais idênticas às de ditaduras. Balas de borracha já têm agressividade mais
do que suficiente para intimidar e conter possíveis investidas de arruaceiros
contra policiais.
Os governadores e seus prepostos para a
"segurança" pública não podem instaurar ambientes de guerra civil,
com suas armas inadmissíveis e ferocidade injustificável permitidas, senão
estimuladas, como se fossem normais na democracia. Essa prática é uma
transgressão ao Estado de Direito e como tal pode ser tratada, por meio de
impeachment.
É ainda bem antes da Copa que se decide a
maneira como sua chegada será recebida nas ruas. Em junho passado, a violência
da PM paulista, contra grupos que degradaram a grande passeata, incentivou
protestos que desandaram em arruaça e violência por vários Estados.
Caso os
responsáveis pela contenção dos despropósitos de qualquer lado não se limitem a
métodos suportáveis, a tendência mais provável é de que o crescendo nacional da
reação seja maior do que o anterior. Até o pretexto, motivo de quase
unanimidade, facilitaria.
Pretexto, sim. Quando estimados os gastos com a
Copa, os estádios a serem construídos, a prevista marotagem dos aumentos de
custos acertados entre empreiteiras e governos, raríssimos foram críticos dessa
irresponsabilidade, de dimensão ainda incalculável.
Os
interesses políticos e os financeiros se associaram ao Brasil levianamente festivo.
Ao se aproximar o que foi tão celebrado, com a ansiedade popular do
antimaracanazo, tudo de repente virou motivo de "rebelião"? Não dá
para crer. Ao menos, porém, há uma originalidade aí: rebelião popular com data
marcada, e anúncio a seus antagonistas com larga antecedência.
Seja qual for a verdade sobre a situação
resultante nos tiros da PM contra Fabrício Proteus, a primeira responsabilidade
é clara: a autorização de armas de fogo à PM em situação que não as requer, e
na qual são a maior ameaça. Sua desnecessidade em tal situação está atestada na
prática: a mais eficiente contenção da arruaça violenta, no Rio, foi obtida na
última grande "manifestação" –com a PM desprovida de arma fogo.
A democracia não exclui confrontos entre
opositores e centuriões do que os governos vejam como ordem pública. Mas exige
condições e limitações que nenhum poder está autorizado a transpor. Tida como o
regime das liberdades, a democracia, na realidade, não é menos condicionante e
limitadora do que os outros regimes.
Mas, o lugar-comum enfim se justifica, no
bom sentido. Que não inclui o uso indiscriminado de arma de fogo nem em nome da
ordem pretendidamente democrática.
Janio de Freitas, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, é um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Analisa com perspicácia e ousadia as questões políticas e econômicas. Escreve aos domingos, terças e quintas-feiras.