03/09/2013
GÍRIA & SOCIEDADE
O surgimento
dos ‘coxinhas’
Por Sergio da Motta e
Albuquerque
Os protestos
iniciados em junho trouxeram com eles o emprego em massa de um vocábulo
conhecido por descrever um petisco popular pouco saudável: a coxinha. Mas agora
a palavra adquiriu novo sentido e eu demorei a entender com certeza seu
significado preciso.
A fala dos
manifestantes trazia cada vez mais a meus ouvidos cariocas esta palavra que eu
só conseguia entender pelo contexto: “coxinha” podia ser um adjetivo ou
substantivo, a depender da situação, e referia-se a alguém meio tolo, ou
conservador.
Também ouvi falar
do verbo “coxinhar”. Que se refere à atividade do “coxinha”, ou às ações de um.
Mas isso foi pouco para mim e para muitos outros brasileiros.
O que é, afinal, um “coxinha”? O que
é ser “coxinha”? O vocábulo, amplamente usado nos protestos, era um enigma para
mim. Encontrei duas publicações que tentaram explicar o novo significado do
velho e gorduroso petisco de botequim: ano passado, a Folha
de S.Paulo (22/04/2012), em sua revista de
domingo, fez uma boa tentativa.
Começou com uma explicação de sua abrangência
geográfica: trata-se de gíria paulistana. Para explicar o novo significado da
palavra entrevistou pessoas que já tinham ouvido falar dela. Logo surgiu um
consenso sobre o seu significado: “coxinha” é gente engomada, certinha, que
segue a maioria. Gente convencional e conservadora, em suma.
Mas foi o diário Correio
do Brasil (23/06) que apresentou a melhor
explicação para o vocábulo que tomou conta dos protestos. O periódico não
buscou somente a nova acepção da palavra, mas sua relação com os protestos.
Juntou o sociólogo Leonardo Rossato e o professor de português Michel Montanha,
que elaboraram uma “análise sociológica” do coxinha e apresentaram uma hipótese
sobre sua origem:
“Coxinha, sociologicamente falando, é
um grupo social específico, que compartilha determinados valores. Dentre eles
está o individualismo exacerbado e dezenas de coisas que derivam disso: a necessidade
de diferenciação em relação ao restante da sociedade, a forte priorização da
segurança em sua vida cotidiana, como elemento de “não-mistura” com o restante
da sociedade, aliadas com uma forte necessidade de parecer engraçado ou bom
moço.”
Símbolo do amadurecimento
O vocábulo parece
ter sua origem nos pobres “almoços” dos policiais nos anos de 1980, que
recebiam vales-refeição tão desvalorizados que acabaram apelidados de
“vale-coxinha”. Com o tempo, policial e coxinha tornaram-se sinônimos. Os programas
policiais no rádio e na TV acabaram por estender o novo significado da palavra
a todos aqueles preocupados com a segurança acima de tudo.
Mas por que os coxinhas agora
tornaram-se tão notórios? Por que acabaram mais visíveis à sociedade neste
momento de protestos? O Correio do Brasil explicou:
“Até algum tempo atrás, eles não tinham essa
necessidade de diferenciação. A diferenciação se dava naturalmente, com a
absurda desigualdade social das metrópoles brasileiras.
Hoje, com cada vez mais
gente ganhando melhor e consumindo, esse grupo social busca outras formas de
afirmar sua diferenciação. Para isso, muitas vezes andam engomados, se vestem
de uma maneira específica, são ‘politicamente corretos’, dentro de sua noção
deturpada de política, e nutrem uma arrogância quase intragável, com
pouquíssima tolerância a qualquer crítica.”
Engomados, bons
moços, preocupados em acentuarem suas diferenças do resto da sociedade,
inimigos da crítica... Acabaram ridicularizados pelo restante da sociedade.
Antes dos protestos, eles só eram visíveis em São Paulo.
Coxinha era
fenômeno tipicamente paulistano: “Ele não aparecia, portanto não poderia ser
criticado ou ridicularizado”, explicou o periódico.
O coxinha, paradoxalmente é
um símbolo do amadurecimento da nossa sociedade, concluiu o jornal: a sociedade
brasileira amadureceu porque a estrutura de classes sociais tornou-se mais
complexa e diferenciada.
Acomodados pedantes
Os protestos de junho em diante
expuseram os coxinhas à população brasileira. Narcisistas, incapazes de
identificação com o próprio povo, movidos pela necessidade de diferenciação, a
teoria de Thorstein Veblen, norte-americano, economista,
sociólogo e mentor de Jean Baudrillard, explica em parte esses “cidadãos
diferenciados”.
Para Veblen, os seres humanos são guiados por necessidade de
diferenciação e distinção. Vicente de Paula Faleiros, em seu livro A
política social do Estado capitalista (1987, Cortez), comentou o
sociólogo norte-americano:
“O homem atua por emulação e pelo desejo de se
evidenciar entre os demais. Desta maneira, as classes superiores se distinguem
das classes trabalhadoras pelo evidente ‘não-trabalho’. O lazer, a moda, o
consumo ostensivo são todos meios para se distinguir.”
Distinção, moda,
lazer e consumo conspícuo realmente fazem parte do universo dos coxinhas. Só
encontro um problema com esta explicação: ela naturaliza uma condição humana
que na realidade é produzida socialmente. Ou seja, os coxinhas são coxinhas
porque adotam um determinado sistema de crenças e valores compartilhado por
outros iguais. Não são coxinhas porque a natureza os fez assim. Eles escolheram
ser o que são.
Distinção do resto
da população é a meta e a vida dos coxinhas. Por isso, o desprezo aos protestos
do povo. Eles estão bem longe do mundo de onde vem a maioria daqueles que
protestam.
E querem deixar isso bem claro. É apenas justo que agora eles caiam
no ridículo aos olhos de muitos.
Porque a gente brasileira finalmente acordou e
os coxinhas lá no fundo sabem que não passam de acomodados pedantes, e não
farão parte das mudanças que virão para um país que já não tolera candidamente
os abusos dos poderosos.
***
Sergio da
Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor