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publicado 14/09/2015
ECONOMIA
Sistema bancário brasileiro:
sócio e senhor do ajuste
Estruturado desde os anos 1950 para viver de renda
e títulos públicos, setor desfruta dos juros,
vira cúmplice do desemprego e engorda
os lucros em plena crise
Manifestação da campanha nacional dos
bancários denuncia os pecados capitais do sistema financeiro
Em recente entrevista a um jornal, o dono do Itaú Unibanco,
Roberto Setúbal, fez menção à chamada Agenda Brasil, um conjunto de sugestões
de políticas de governo a ser negociadas entre Planalto e Congresso. A “agenda”
é assinada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), embora digam
as más línguas que teria sido escrita por outras mãos. Setúbal disse que a
iniciativa dá alguns “passos”, mas são medidas modestas, “para ir levando o
país a sair um pouco dessa crise”. O banqueiro defende reformas mais amplas.
Não menciona, por exemplo, a tributária, para que acionistas de grandes
empresas, como ele, paguem mais impostos sobre seus lucros e para que o país
arrecade mais. Mas acentua o que seria uma prioridade: “Reforma trabalhista”.
REGIS
FILHO/VALOR/ FOLHAPRESS
O Itaú Unibanco de Setúbal pretende fechar agências de
“tijolo”–
onde trabalham 70% de seus funcionários –, e substituí-las
por agências digitais
Segundo Setúbal, o Brasil é um dos países com
mais processos no mundo.
“No Japão há 7 mil ações trabalhistas.
Nos Estados Unidos, não chegam a 70 mil.
No Brasil, temos alguns milhões.
Criou-se uma indústria de ação trabalhista, que
é um negócio que precisa ser repensado.”
Indagado se não seria porque há muito
desrespeito a direitos dos trabalhadores, rebateu que o problema é a
legislação:
“Nenhuma empresa consegue cumprir”.
No primeiro semestre deste ano, cada um dos seus
85 mil funcionários proporcionou, em média, um lucro de R$ 140 mil aos acionistas do Itaú, fazendo com que o banco atingisse
resultado líquido recorde de quase R$ 12 bilhões.
Ainda assim, deve ser tarefa árdua cumprir a
legislação, mas o banqueiro garante que se esforça.
“O Itaú tem enorme dedicação a isso, somos
superlegalistas, mas simplesmente é impossível cumprir todos os detalhes.”
Maria José (nome fictício),
30 anos, sentiu na pele essa “impossibilidade”. Há poucas semanas, foi
despedida por justa causa, sem no entanto saber por quê. Em 11 anos na área
administrativa do Itaú, Maria teve sucessivas boas avaliações. “Fazia horas
extras frequentes, durante a semana, aos sábados, trabalhava direitinho, ia
além das expectativas. Era tida como exemplar. De repente, alegam alguma coisa
relacionada a conduta, sem especificar, e me mandam embora por justa causa”,
diz.
A bancária tornou-se, assim,
mais uma das “milhões” de pessoas a acionar na Justiça empresas que não cumprem
todos os “detalhes”. A reportagem pergunta se ela não teme ser identificada
pela singularidade do caso, mesmo não informando o nome verdadeiro. “Não há
singularidade. Tem acontecido com muita gente. São casos de justa causa sem
causa. E muitas demissões de gente próxima de se aposentar. É humilhante, e um
terror para quem fica, porque se ser funcionário exemplar não basta...”
Trabuco, do Bradesco, promete com a aquisição do
HSBC “transição respeitosa”com os empregos
Em 12 meses completados em 30
de junho, o Itaú Unibanco demitiu 2.392 pessoas. Seu concorrente direto, o
Bradesco, cortou 5.125. Entre os três maiores privados, o Santander foi o único
que apresentou saldo positivo, contratou 1.485 a mais do que os que demitiu. A
conduta, no entanto, não é de tirar o chapéu.
Segundo a subseção do Dieese no
Sindicato dos Bancários de São Paulo, mesmo com as admissões o banco espanhol
apresentou no balanço de junho despesas com pessoal apenas 7,8% maiores do que
no ano anterior – menos, portanto, que os reajustes salariais de 8,5% a 9% (nos
pisos) aplicados. Sinal, segundo o Dieese, de que o Santander pratica uma
alta rotatividade, e que os admitidos chegaram ganhando muito menos do que os
demitidos – prática comum nos grandes bancos.
A analista de operações Noêmia
Carvalho, de 37 anos, foi demitida da área de recuperação de crédito em abril,
depois de 16 anos de Santander – vinda do antigo banco Real.
Atuando nos últimos quatro anos
em análise de restrições financeiras e relacionamento com o Banco Central,
serviço de atendimento ao cliente de agências e ouvidoria, Noêmia observou uma
substituição constante de pessoal efetivo por terceirizado. E viu jovens
aprendizes e estagiários assumindo múltiplas tarefas antes a cargo de pessoas
mais experientes.
“Passamos a deparar com uma
situação em que de cada dez funcionários, apenas dois ou três eram contratados
diretos, atuando como prepostos do banco para atuar com os terceiros. Foi um
evidente movimento de corte de custos com funcionários”, diz.
A situação torna a proteção aos
empregos uma das prioridades do Comando Nacional dos Bancários, que está em
processo de negociação com a federação dos bancos, a Fenaban, para renovação da
convenção coletiva nacional de trabalho – a data-base é 1º de setembro.
De acordo como o comando, um
estudo feito com base na Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do
Ministério do Trabalho e Emprego, revela que nos últimos quatro anos os
salários dos contratados são 42% inferiores aos dos que saíram.
Além disso, a compra do HSBC
pelo Bradesco causa apreensão na categoria, já que não há caso de processo de
aquisição que não tenha resultado em enxugamento de quadros de pessoal – embora
o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, tenha prometido uma “transição
respeitosa” com os funcionários.
GERARDO
LAZZARI/BANCÁRIOS SP
Juvandia: “Não há razão para um setor que ganha
tanto terceirizar, usar a rotatividade e a tecnologia para demitir”
Também preocupa o setor a meta, recentemente anunciada pelo Itaú
em reunião de acionistas, de avançar na substituição de suas 3.863 agências
físicas por agências digitais.
O banco de Roberto Setúbal
prevê o fechamento de 15% das “agências de tijolo” em três anos, e de metade
delas em dez anos. Atualmente, 70% dos funcionários da instituição estão nessas
unidades.
“Queremos avançar na questão do
respeito aos empregos e da contratação de mais bancários para melhorar as
condições de trabalho e atendimento. Não há razão para um setor que ganha tanto
terceirizar, usar a rotatividade, a tecnologia para demitir e reduzir custos”,
diz a presidenta do sindicato, Juvandia Moreira.
Nunca antes
Ao alcançar a soma de R$ 24
bilhões de lucros em seis meses, de janeiro a junho, do três maiores bancos
privados do país ostentam situação incompatível com a realidade econômica
brasileira. Enquanto a previsão para a variação do PIB para os próximos dois
anos é sombria, de menos 2%, o resultado líquido do Itaú Unibanco é 25,7%
superior ao do primeiro semestre do ano passado.
Ao passo em que a arrecadação
do país – União, estados e municípios – sofre com a queda da atividade
econômica, o ganho do Bradesco, de R$ 8,8 bilhões, é 20,6% mais gordo. E num
período em que as taxas de desemprego apontam para cima e a renda média do trabalho,
para baixo, o Santander comemora um salto de 15,5% em seu lucro semestral, para
R$ 3,3 bilhões.
Parte desse resultado vem da
força do trabalho. Assim como o Itaú aumentou em 29,2% o lucro líquido médio
proporcionado por funcionário, o Bradesco alcançou de R$ 93,4 mil (mais 27,2%)
e o Santander, R$ 66 mil (mais 12,1%).
Outra parte vem das tarifas
pagas pelos clientes – foram R$ 32,5 bilhões em receitas “com prestação de
serviços” nos três maiores bancos privados de janeiro a junho – e dos juros dos
empréstimos que tomam – as receitas com operações de crédito somaram R$ 95,6
bilhões.
Há ainda uma outra fonte
importante de renda para os bancos: a dívida pública.
Na comparação com o primeiro
semestre de 2014, o resultado do Itaú Unibanco com Títulos e Valores
Mobiliários (TVM) cresceu 95,1%, o do Bradesco 44,8% e o do Santander 64,5%. Os
três somados arrecadaram R$ 62,6 bilhões com TVM, em que têm grande peso os
títulos da dívida da União remunerados com base na taxa básica de juros do
Banco Central, a Selic, que está em 14,25% e proporciona ganhos reais (acima da
inflação), próximos de 4% ao ano.
Para o governo, lançado a um
regime de ajuste fiscal desde o início do segundo mandato de Dilma Rousseff com
objetivo de fazer sobrar dinheiro para fechar as contas, os juros da dívida
representaram apenas no primeiro semestre uma despesa de R$ 225 bilhões.
A pretexto de ajudar a
controlar a inflação e ajudar o país a atravessar um momento de crise, que o
governo calcula durar até 2016, a política de juros – além de engordar os
ganhos financeiros de quem aposta neles – esfria a atividade econômica. E a
queda no nível de empregos e de renda faz a máquina dos setores dinâmicos da
economia, como indústria e comércio, parar.
Raciocínio ilógico
O professor José Carlos Braga,
do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
lamenta que o governo Dilma tenha recuado da batalha contra a financeirização
da economia, que marcou boa parte de seu primeiro mandato.
A partir de agosto de 2011, a
taxa Selic passou por sucessivas reuniões no Comitê de Política Monetária,
batendo em outubro de 2012 em seu mais baixo patamar histórico, 7,25% ao ano,
ante uma inflação de 5,45% (taxa real de 1,7%).
“Naquele movimento, Dilma se
configurava como a primeira presidente, desde Getúlio Vargas em 1952, a buscar
uma política de enfrentamento às chamadas altas finanças, nas quais podemos
incluir os bancos, mas também a tesouraria das grandes empresas, que fazem
altos investimentos no mercado especulativo”, diz.
Como não veio a esperada
recuperação da economia mundial desencadeada após a crise de 2008, faltaram ao
país os investimentos internos do setor produtivo privado necessários para
estabelecer uma nova matriz de desenvolvimento.
Braga não descarta uma conspiração do mundo das altas finanças
tenha forçado o governo a retroceder, de modo a devolver o sistema financeiro
ao seu tradicional modus operandi.
“O sistema bancário do país não
é partícipe do processo de industrialização como é tradição dos países em que
políticas industriais se desenvolveram e se internacionalizaram. Desde o Plano
de Metas de JK, nos anos 1950, se constituiu-se um sistema bancário privado
inapto a apoiar o desenvolvimento”, lembra.
O governo chegou a caminhar
nessa direção. Houve acúmulo de conquistas sociais, inclusão, redução de
desigualdades, criação de empregos, elevação da renda, fortes componentes para
abastecer a atividade econômica, como observa o economista.
Os bancos públicos – Banco do
Brasil, Caixa Federal, BNDES, Banco do Nordeste –, cada um em seu nicho,
exerceram papel determinante para forçar os bancos privados a adequar suas
políticas de crédito.
“Mas faltou continuidade. Não
houve uma reestruturação para dar sequência a isso, com o setor privado sendo
protagonista, e não apenas beneficiário, do processo de desenvolvimento.”
Para Braga, no momento em que
esse novo cenário se desenhava “para valer” – a partir da articulação dos
bancos públicos – veio a reação política das forças atuantes na estrutura
econômica do país. “Por trás dessa reação estão interesses dos que repelem o
fato de o país ter bancos públicos com esse potencial, o único da América
Latina. O México já teve, o Chile, e tiveram seu papel extremamente reduzido.
Há economistas por aí que não
escondem que defendem o mesmo aqui, como repassar os recursos do BNDES para a
gestão dos bancos privados”, alerta.
Medidas conectadas
Os bancos públicos brasileiros
que atuam no varejo incomodam, até porque fazem a disputa comercial com o
mercado privado. Banco do Brasil e Caixa tiveram juntos no primeiro semestre
lucro líquido de R$ 6 bilhões e R$ 3,5 bilhões, respectivamente, com
crescimento de 11,5% e 2,8% sobre igual período de 2014.
Enquanto o BB apresentou
pequeno saldo positivo no número de empregados (crescimento de 0,7%, para 112
mil), a Caixa perdeu 1.853 postos de trabalho (queda de 1,86%, para 98 mil
empregados).
Ambas as instituições, além de
pisar no freio nas concessões de empréstimos com que vinham puxando o mercado
de crédito no primeiro governo, também desfrutaram em seus balanços da política
de juros altos do BC. Seus resultados com Títulos de Valores Mobiliários
somaram R$ 47 bilhões de janeiro a junho, com aumento de 58,7% no BB em relação
aos primeiros seis meses do ano passado, e de 30,7% na Caixa.
Ao iniciar o segundo semestre
em busca de atenuar os impactos da crise política e econômica, o governo voltou
a lançar mão de alguns estímulos ao mercado interno por meio dos bancos que
controla. Foram criadas algumas linhas de financiamento voltadas a estimular as
vendas de veículos e ofertas de crédito com juros reduzidos para empresas que
não demitirem.
“Que sentido têm essas medidas
com uma Selic desse tamanho? Parece cômico, se não fosse trágico”, critica
Braga.
“O país precisa de movimento
conjunto de medidas estruturais e conectadas. Sabemos que é forte a
resistência, e hoje devemos lamentar que quando houve alguma força política
para isso ela não foi utilizada”, observa o professor, referindo-se ao período
que vai do final do segundo mandato de Lula, após o estouro da crise de
dimensões globais de 2008, ao primeiro mandato de Dilma.
“Se a trajetória do sistema
bancário brasileiro sempre foi de papel passivo na economia, beneficiário dos
títulos da dívida pública, faltou ousadia ao governo para reverter.”
A política econômica teria de
ser a da “cenoura e do cassetete”, defende o economista referindo-se à
expressão de origem inglesa carrot and stick, que ilustra o gesto do cavaleiro
que tanto pode fazer o animal correr pendurando uma cenoura à sua frente, ou
dando-lhe pauladas no lombo.
Ele explica: “Para banco que
participa do processo produtivo, estimulando o desenvolvimento e tudo o que
decorre dele – emprego, renda, arrecadação – dá-se um tratamento leve pelo
Fisco, cenoura. Para bancos que preferem o jogo rentista do mercado, tratamento
fiscal mais rigoroso, pau. Mas isso como política estrutural, e não pontual.”
No Brasil, lembra Braga, a
desindustrialização vem desde os anos 1990 e nada foi feito para detê-la.
“País desenvolvido que se preza
não abre mão de construir uma estrutura industrial vigorosa”, afirma. O
economista encara com ceticismo as previsões da equipe econômica de que o
momento crítico seja “passageiro” e se estenda até 2016, para então se iniciar
o “novo ciclo de desenvolvimento” prometido por Dilma em sua campanha.
“Que raciocínio pode sustentar
essa estimativa? É possível que seja uma crise passageira?
É. - Mas desde que se
imponha outra forma de enfrentamento, que não seja esse que leva à recessão, ou
à estagnação.
Estamos em plena contramão.
Se foi ruim para a Grécia, não será
bom para o Brasil.”