FCO.LAMBERTO FONTES
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9/mar/2016
Lula
deve morrer
Lula já deveria ter
morrido. Cedo, quando nasceu.
Quando veio ao mundo
em 1945, a mortalidade infantil no Brasil era de 146 x 1000. Quase 150 óbitos
antes do primeiro ano de vida em cada mil crianças. Isto na média nacional que,
hoje, a propósito, é dez vezes menor. Mas naquele tempo, para quem vinha
aumentar família pobre, da área rural e do Nordeste, os números eram ainda mais
atrozes.
Um dos 12 filhos de dona Lindu — quatro não sobreviveram —
Lula nasceu em Caetés, então zona rural de Garanhuns/PE. Casa de taipa, erguida
em barro e madeira, um quarto, uma mesa, cinco redes. Água? Amarela, das poças
de chuva, dividida com o gado e povoada por girinos. Comida? Feijão, arroz e
farinha, carne rara, às vezes de preá ou passarinho. Proteína animal acessível
era a da içá, nome da tanajura no Agreste pernambucano.
Talvez por isso prosperou na região a prática não registrar
os bebês logo após o parto. Aguardava-se o segundo aniversário. Era preciso que
a criança “vingasse”. Aquelas que sucumbiam antes dos dois anos eram sepultadas
sem nome nem história. Agitava-se então um sininho. Na tradição de vidas tão
ásperas, era o sinal para informar que mais um anjinho subira ao céu.
Quem sabe a dieta de formiga frita tenha salvado Lula de
virar estatística. É bem provável que aqueles que o odeiam passem a odiar
também o inseto providencial que matou sua fome e o ajudou a sobreviver. E o
sininho não bateu.
Vendedor de tapioca aos sete anos, depois tintureiro,
engraxate, metalúrgico e presidente de sindicato, Lula poderia ter morrido
naquele sábado, 19 de abril de 1980, quando seis agentes do Dops empunhando
metralhadoras foram prendê-lo em casa às 5h30 de uma manhã nevoenta.
Uma “condução
coercitiva” em São Bernardo – com produção, cenografia, figurinos e efeitos
especiais muito mais humildes que os atuais — cinco anos antes da ditadura
exalar seu último suspiro. Temeu, como diria depois, aparecer morto num
“acidente” na via Anchieta. Afinal, sob o regime civil-militar muita gente
buscada em casa para “prestar esclarecimentos” nunca mais foi vista. Virou
preso político mas, outra vez, não morreu.
Lula deveria morrer quando um câncer atacou sua laringe em
2011. Tão logo correu a notícia, as alcatéias, nutridas com o lixo tóxico da
mídia, uivaram em regozijo nas redes sociais e caixaus de comentários.
“Tenho dó do câncer
ter que comer carniça petralha”, lamentou um piedoso internauta.
Outras vozes se
juntaram para chamar o presidente adoentado — que batera sucessivos recordes de
popularidade atingindo índice de 83% de aprovação, o maior da história do país
— de “verme”, “crápula”, “desprezível”, “nove dedos” e “imundo”. Mas Lula os
decepcionou.
E, novamente, não
morreu.
Lula deveria morrer muitas vezes. Antes de fundar a CUT em
1983, a quinta maior central sindical do mundo. Antes de conceber o Partido dos
Trabalhadores em 1980 que conquistaria no voto, quatro mandatos de presidente
da república. Antes do Bolsa-Família, do Prouni, de retirar 27 milhões de
brasileiros da pobreza extrema, do reajuste anual do salário-mínimo acima da inflação,
do PAC, da ampliação da distribuição da renda, de implantar 14 novas
universidades federais (contra nenhuma de seu antecessor), de criar mais de 200
escolas técnicas, da descoberta do pré-sal, da política externa independente…
Lula deveria morrer quando emergiu da plebe rude para
reivindicar a Presidência da República. E conquistar um posto que, até então,
era reservado por direito divino aos nhonhôs da Casa Grande. E este foi um
pecado imperdoável. Mortal.
Lula deve morrer porque morto o querem os donatários das
capitanias hereditárias da mídia. Os mesmos que, agora, estertoram em lenta
agonia na senda da descartabilidade e da obsolescência. E se aferram ao golpe
por razões políticas, partidárias e ideológicas mas, acima de tudo, mirando os
cofres do Banco do Brasil e do BNDES como última esperança de sobrevida.
Aqueles mesmos que, em 1954, revoluteavam com as “aves de rapina” a que Getúlio
aludiu na sua carta-testamento:
“A campanha
subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais
revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros
extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário
mínimo se desencadearam os ódios” – como se vê, ódio já era o combustível que
ardia para conduzir o líder trabalhista ao holocausto.
Aqueles mesmos para
quem Jango, dez anos depois, apontaria no discurso da Central do Brasil: “A
democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do
anti-sindicato, da anti-reforma (…) A democracia que eles querem é a democracia
para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados,
nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos
populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício”.
Lula deve morrer porque é o desejo dos pets dos barões da
mídia: muitos “comunicadores”, colunistas, articulistas, apresentadores de
rádio e TV e caudatários avulsos. Há quem reproduza a retórica patronal por
convicção.
E como é benéfico ser
abduzido por tais ideias!
Sobretudo para
preservar a saúde empregatícia, receber aquele tapinha nas costas e, por um
átimo, deixar-se levar pelo devaneio de pertencer ao mesmo clube, a despeito do
precipício de classe social, renda e poder que cinde mundos tão opostos. Outros
o fazem por obrigação – entre as três, a mais compreensível e respeitável das
escolhas.
E existem aqueles que
cedem calculadamente por submissão.
Os que se agacham para
subir. E não merecem o mínimo respeito. Neles, é tal a sofreguidão com que
entregam suas almas à concupiscência do amo que não parece disparatado supor
que lhe regalariam as polpas com a mesma faceirice caso houvesse algum
interesse na oferta.
Lula deve morrer porque tal aparenta ser a aspiração de uma
PF cujos delegados agem como agitadores da direita nas redes sociais,
ultrajando seus superiores. A mesma PF que serviu de polícia política prestando
relevantes serviços à ditadura de 1964 sem um só gesto de repulsa ou de
contrariedade. E que, na democracia, age sem prestar contas à democracia. Não é
outra a avidez do MPF. Que afigura desertar do Estado laico para se guiar por
um grotesco salvacionismo de ocasião tornando-se, além disso, aríete do golpe
em conchavo com as panzer division da imprensa corporativa.
E o que dizer dos
anseios de um tiranete de província que se porta como o senhor do universo?
Tudo sob a contemplação pusilânime, os joelhos tiritantes e as mandíbulas
chacoalhando como castanholas do STF que, após construir uma breve historia de
avanços sociais, acocora-se na hora de travar os reiterados abusos contra o
Estado Democrático de Direito.
Lula deve morrer
porque sua morte é o que mais ambicionam as madames botocadas e seus maridos
botocudos, a lúmpen burguesia boçal, egoísta e plastificada, clamando pelo
golpe nas ruas com seus tênis, óculos escuros e abrigos de grife, seus poodles
no colo e seus labradores na coleira. Os jovens odiadores, os que bombam os
bíceps e matam o cérebro por inanição. O saudosismo de homens e mulheres
brancos, de meia-idade e classe média de um regime assassino que se arrastou por
duas décadas de infâmia. A ditadura que seus pais e mães engolidores de hóstias
pediram nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade empunhando rosários e
rezando aves-marias contra “a ameaça vermelha”.
Fé, rosário e orações
viraram arcaísmos. Agora, o nome de Roma é Miami, o da igreja é shopping, o da
reza é academia, o da hóstia é botox. Ontem como hoje, porém, o medo e o rancor
reverberados com a ascensão da ralé é igual.
Lula deve morrer. Está definido. Mas há um problema: ele
não quer. Humilhado e ofendido, até avisou que se queriam matar a jararaca,
erraram a paulada. Pior: pela amostragem, muita gente também não quer que ele
morra. Gente que acha que, se Lula morrer, morrerá igualmente um olhar
horizontal e inédito que percebeu os deserdados e deles cuidou. Enxergou a
maioria e não os dez por cento de sempre. Está dado o impasse.
Para Lula morrer,
terão que matá-lo.
Não será tarefa fácil.
Prova disso é que o
desprezo fantasiado de negro com prepotência e metralhadoras recebeu uma
resposta popular que não imaginava. Nem os autores, nem seus cúmplices. Os
desafetos que tranquem as portas, ponham as fraldas e mordam o travesseiro.
2018 está logo ali e a
jararaca vai fumar.
Aquele que se recusa a
morrer está novamente em campanha.