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16/03/2015
Manifestações da 'middle class':
polifonia e ódio de classes
dos 'filhos da mídia'
Devorados pela ignorância política propagada pela mídia,
os manifestantes vociferavam seu ódio ao PT,
aos partidos e à política, sem propostas concretas. |
Francisco Fonseca
As manifestações ocorridas no domingo, dia 15/03,
encerram algumas lições que, embora mereçam maior maturação, podem ser
sintetizadas em alguns temas-chave.
POLIFONIA
O primeiro deles refere-se à constatação de que os
manifestantes não têm um foco claro e sobretudo não têm a mínima noção sobre o
processo político.
Em outras palavras, há clara polifonia de insatisfações,
envoltas num conservadorismo difuso: crítica genérica à corrupção, preocupação
com a perda de privilégios, sentimento de “caos”, temor quanto ao futuro
econômico, crença em governo sem partidos, arroubos autoritários, não aceitação
do resultado eleitoral e, claro, a ira contra um partido que promoveu
importante diminuição das desigualdades sociais.
Essa polifonia, com alguns outros elementos, já fora
vista em junho de 2013 e, agora, quase que como extensão dela, se renova com o
resultado eleitoral extremamente apertado no ano passado.
Deve-se notar que esse conservadorismo difuso, que
imputa ao PT a causa dos males do país e, sobretudo, desse grupo particular de
manifestantes, uma vez que pertencentes a estratos sociais homogêneos, estava
presente desde as reformas do Governo Lula, mas somente no ano passado adquiriu
densidade.
Em outras palavras, aparentemente os eventos de junho de
2013 – iniciados por jovens estudantes militantes de uma causa popular, a
“tarifa zero” – alavancaram, paradoxalmente, os setores conservadores, o que
pode ser expresso em três eventos: polarização eleitoral à presidência, Congresso
Nacional extremamente conservador e, agora, manifestações de rua.
O ÓDIO DE CLASSE DA “MIDDLE CLASS” TRADICIONAL
A classe média “tradicional”, composta, entre outros,
por profissionais liberais, por executivos de médio e alto escalão de empresas,
normalmente privadas, e de uma gama de trabalhadores que vivem “por conta
própria” – caso de certos tipos de consultores e um sem-número de prestadores
de serviços –, cuja renda é alta, desenvolveram ódio de classe aos pobres sem
igual.
Esses grupos associam o PT ao “definhamento do mérito
individual” em razão:
a) das políticas redistributivas, sobretudo da
transferência de renda via Bolsa Família, que supostamente implicaria “ajuda
aos não merecedores” e formação de “curral eleitoral”;
b) da participação dos
pobres, dos trabalhadores sindicalizados e dos movimentos sociais nas políticas
de governo; e
c) da percepção simbólica de que se trata de um governo “para” os
trabalhadores, em que a classe média tradicional não teria espaço;
d) do incômodo
de que a ascensão econômico/social dos trabalhadores faz com que esses grupos
ocupem espaços reais – mas com profunda significação simbólica – até então
exclusivo desta classe média e das elites.
Alguns exemplos são marcantes: cotas
para grupos vulneráveis, notadamente os negros, em universidades e cargos
públicos; revisão da forma de ingresso na universidade, retirando o vestibular
– instrumento de filtragem das elites – como única forma para tanto; acesso a
bens de consumo e serviços jamais tidos pelos pobres, casos dos automóveis,
viagens aéreas, frequência e consumo em shopping centers, consumo de bens de
determinadas marcas etc.
Em outras palavras, a “meritocracia”, verdadeira
ideologia utilizada para justificar privilégios históricos, nesse caso, estaria,
de acordo com essa percepção, sendo corroída pelos governos petistas: daí o
ódio potencial ao PT, mas agora ostensivo e destituído de vergonha de se
pronunciar.
Afinal, o lema “cada macaco no seu galho” estaria sendo
desrespeitado pelo petismo, o que seria inadmissível a uma sociedade cujas
entranhas ainda é fortemente hierárquica e desigual (em vários sentidos), uma
vez que os legados latifundiário e escravista não foram desfeitos.
Essa middle class, cujo norte é a simbologia do “self
made man” estadonidense, percebeu que, pelo voto, não ganhará e, dessa forma,
parece ter descoberto o uso das redes sociais para se mobilizar, o que é
inédito em se tratando desse agrupamento social, cuja visão predominante é o
individualismo.
Mas deve-se atentar para o papel jogado pelos “inocentes
úteis” das chamadas “classes médias ascendentes”, em que o papel das políticas
governamentais petistas é crucial para sua ascensão, por meio do ProUni, da
valorização do salário mínimo, da ampliação e consolidação do mercado interno,
da extensão do crédito (produtivo e ao consumidor), da ampliação das
universidades públicas e de seu acesso mais diverso (como apontamos acima),
entre outras.
Esses grupos, genericamente chamados de “classe C”, tendem a reproduzir
o discurso de valorização do mérito individual, esquecendo-se que sua ascensão
é resultante da vontade política, consolidada em políticas públicas, reitere,
dos Governos Lula e Dilma.
Daí deriva o perigo do discurso das classes médias
tradicionais e das elites se “popularizarem”, virando a tendência reformista
incremental de centro-esquerda representada – embora de forma bastante
contraditória – pelo petismo, em prol do conservadorismo de uma “nova direita”.
OS FILHOS DA MÍDIA
Está claro que a despolitização em geral, mas
particularmente das classes médias, advém diretamente do papel dos meios de
comunicação, cujo sistema institucional/legal, de influência política, e modelo
de negócio não foi alterado com a redemocratização.
O desserviço à democracia que o aparato de emissoras de
rádio e televisão – que são concessões públicas, nunca é demais relembrar – e
os grandes jornais e revistas fizeram, particularmente desde a
redemocratização, e fazem ao país é elemento crucial para a constituição da
visão tosca dos manifestantes.
Assim, a junção de “interesse de classe”, que
motiva defesa de privilégios, se junta com a mais completa ignorância política,
manifesta na despolitização generalizante, na incapacidade de reflexão (senso comum)
e na insolidariedade social.
Tal como apontado por diversos analistas, parte desses
grupos que foram às manifestações polifônicas de 2013, que votaram – em grande
parte – em Aécio e Marina –, e que agora foram às manifestações do dia 15/03,
são claramente “filhos da mídia”, o que implica, sem meias palavras: capacidade
manipulatória dos grandes meios de comunicação, sobretudo a Rede Globo de
Televisão; inculcação estrutural da “ignorância política”, mesmo em tempos de
acesso à internet e redes sociais – instrumentos de que são useiros e vezeiros
– , o que torna suas capacidades críticas bastante limitadas, tal como se vê
nos discursos tanto dos “líderes” como dos “liderados”; e profunda
despolitização.
Não é coincidência que a crítica generalizada aos
partidos – embora com ódio particular ao PT –, à política e mesmo à democracia
apareça como elemento basilar do discurso antipolítico.
É por isso, igualmente,
que as lideranças que promoveram as manifestações do dia 15/03, e mesmo as
anteriores, logo após as eleições, são distantes dos partidos e adotam forte
discurso antipardidário e mesmo antipolítico.
Nesse cenário, o PSDB e outros
partidos de oposição que, ao apoiar irresponsavelmente o pedido de
“impeachment” no bojo de toda forma de preconceito e criminalização do PT, não
perceberam que têm grandes chances de serem tragados por movimentos outsiders.
Isso representa enorme perigo à democracia e ao sistema político, uma vez que
põe por terra instituições, procedimentos e processo democrático sem ter nada a
oferecer em seu lugar!
A inapetência e falta de coragem política do PT em
reformar democraticamente a mídia, como o fizeram a Argentina, o Uruguai, o
Equador, assim como a Inglaterra, entre outros, está custando caro ao próprio
PT e à democracia como um todo.
Mais ainda, a manutenção bilionária da verba
publicitária destinada à grande mídia, mesmo com toda forma de boicote,
mentiras, manipulação e golpismo de seus órgãos, em nome supostamente da
“aliança de classes”, que se esgotou, aparentemente explica a timidez
reformista nesse quesito.
Tal mídia golpista, apoiada numa base social
insatisfeita, está ganhando sobrevida, uma vez que crescentemente perde
leitores, ouvintes e telespectadores.
As manifestações de 15/03 foram,
portanto, conclamadas, infladas e coordenadas pelos grandes meios privados de
comunicação, capitaneadas pelo Sistema Globo de Comunicação.
Não deixa de ser significativo que, sem isso, certamente
o número de participantes seria muito menor, até pelo perfil individualista,
despolitizado e desmobilizado dessas classes médias.
A DIREÇÃO IDEOLÓGICA DO MOVIMENTO
Se a direção operacional das manifestações, que as
organizaram, se dá por grupos “ingênuos” (quanto ao significado do jogo
político) e “amadores” (quanto ao distanciamento do sistema institucional), a
verdadeira direção ideológica e política está nas mãos de setores do capital,
caso sobretudo do capital financeiro, associado a frações do capital produtivo.
O Sistema Globo de Comunicação ocupa papel central na canalização desses
grupos, que os financiam, por meio de patrocínio, o que implica articulação
orgânica.
Foi assim nas manifestações de junho de 2013, em que a
mudança de posição da Rede Globo foi muito significativa, tendo em vista que
sentiu estar distante do “sentimento dos manifestantes”.
Aparentemente aprendeu
a lição e, agora, além de invocar, conclamar e, num certo sentido, organizar as
manifestações, quer claramente dirigir suas ações desde o nascedouro,
controlando-as, tal como nos ensinou Gramsci.
O que está em jogo, a partir de agora, mesmo que os
manifestantes sejam os eleitores de Aécio ou simplesmente antipetistas,
ancora-se na seguinte indagação: conseguirão pautar as ações governamentais, o
que, na prática, significa transmitir pautas dos “dirigentes”
político/ideológicos do movimento?
Mais ainda, contribuirão para manter o
Governo Dilma “nas cordas”, esperando apenas o gongo tocar para acabar a luta,
consagradora, isto é, fazer “sangrar” não apenas o governo mas o PT e o projeto
petista por quatro anos, como expressou o senador Aloysio Nunes?
O QUE FAZER?
Longe de se ter uma “receita”, e muito menos pronta e
acabada, antes de tudo há de se ler a realidade e ter estratégias e táticas
claras e articuladas, o que significa concretamente:
a) defender renhidamente
que o país está muito melhor do que quando Lula ascendeu ao poder;
b) não se
intimidar (“sair das cordas”), adotando postura propositiva e não defensiva;
c)
extinguir completa e imediatamente toda e qualquer verba federal de todos os
meios de comunicação comprometidos com o golpismo, ato que depende do Executivo;
d) mudar, o mais rapidamente possível, a articulação política no Congresso e
aproximar-se dos movimentos sociais;
e) compreender que a “conciliação de
classes” se esgotou, como se observa na fragorosa derrota à presidência da
Câmara dos Deputados, o que implica arcar com os ônus da coalizão, sem qualquer
bônus;
f) criar, paulatinamente, e com forte apoio popular da sociedade
politicamente organizada, formas de alterar o modus operandi do Congresso,
notadamente por meio da pressão social;
g) compreender que, se não houver claro
projeto de poder a possibilidade de o legado petista ser liquidado é muito
grande, o que poderá implicar retrocesso de diversos direitos sociais;
h)
trazer os militantes “de volta” ao apoio a um projeto de poder, tal como o foi
no segundo turno das eleições, o que somente se fará se houver alteração na
política econômica (ajustes mais leves tocados por um ministro atinente a um
projeto popular, o que não passa pela permanência de Joaquim Levy) e não
retrocesso de direitos;
i) responder aos manifestantes das classes médias e aos
movimentos populares com projeto de reforma política, o que implica, por
exemplo, encampar a proposta da Coalizão pela Reforma Política;
j) trazer para
esse projeto setores das classes médias, que se sentem completamente
abandonados, por meio de políticas como a taxação de grandes fortunas, impostos
efetivamente progressivos etc:
numa palavra, desoneração tributária das classes médias
pela via da taxação das grandes fortunas.
A grande questão diz respeito a uma aliança entre os
pobres e setores das classes médias, tal como ocorreu no mundo nórdico, e não a
aliança de todos com todos, em que não se enfrentam nenhum dos grandes
problemas nacionais, tais como agronegócio, política tributária, grandes fortunas,
etc.
Entre tantas outras ações, as ideias acima são linhas
gerais para se pensar em substituir a lógica da coalizão para governar,
efetivar a reforma política e a mudança de rumo na economia (em prol do
crescimento com distribuição de renda).
Nenhuma dessas ideias são fáceis de se implantar, pois
esbarram, como nunca, num Congresso hostil, numa mídia golpista e em largos
setores médios com “sangue nos olhos”, num contexto em que a economia mundial
ainda sofre com os efeitos do crash de 2008. Ainda assim, o espaço para a
inventividade da política é enorme.
As manifestações de 15/03, para além do número dos
participantes – em que as Polícias Militares dos tucanos ajudaram a inflar –, e
cujo perfil é sobejamente conhecido, pode ser um “traque” ou uma “dinamite”.
Os
próximos lances o revelarão, mas ao PT, à centro-esquerda e ao governo federal
cabem tarefas de curto e médio prazos no sentido de estancar a sangria, sair
das cordas, defender seu projeto – que precisa ser cada vez mais popular, mas
incorporador de segmentos das classes médias em detrimento do grande capital –,
e criar condições para que novas bases sociais sejam criadas e recriadas a
ponto de derrotar, tantas outras vezes mais, o conservadorismo elitista, o
neoliberalismo e o ódio de classes!
Não é pouca coisa o que está em jogo!