FCO.LAMBERTO FONTES
Trabalha em JORNALISMO INTERATIVO
Mora em ARAXÁ/MG
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PAULO MOREIRA LEITE
O jornalista e escritor, é diretor do 247 em Brasília
25 de Janeiro de 2016
"Fraude histórica que serve de lição
universal a todos aqueles que têm interesse real em impedir desvios e abusos em
decisões da Justiça, inclusive nas investigações sobre corrupção no Brasil de
nossos dias, em particular na Lava Jato, o caso Dreyfus tem muito a ensinar aos
brasileiros de hoje", escreve Paulo Moreira Leite, sobre o escândalo
político que dividiu a França por muitos anos no fim do século 19 e no qual,
como lembra PML, "jamais foi dado espaço para os argumentos da
defesa"; para o jornalista, uma das principais lições que o caso deixa
para o Brasil "envolve o direito de toda pessoa ser tratada como inocente
até que se prove o contrário"
confira:
Fraude histórica que
serve de lição universal a todos aqueles que têm interesse real em impedir
desvios e abusos em decisões da Justiça, inclusive nas investigações sobre
corrupção no Brasil de nossos dias, em particular na Lava Jato, o caso Dreyfus
tem muito a ensinar aos brasileiros de hoje. Um dos principais ensinamentos
envolve o direito de toda pessoa ser tratada como inocente até que se prove o
contrário.
Parece fácil mas não é – muito menos em situações de tumulto
político e grandes incertezas em pauta.
No Brasil de 2016, não há espaço real para o contraditório, para
a discordância, uma crítica leve, à Lava Jato. A exigência é adesão absoluta,
como prova a reação dos jornais à publicação de um manifesto assinado por 115
advogados, denunciando abusos contra prisioneiros submetidos a longas delações
premiadas, que cumprem a finalidade óbvia de produzir confissões e delações.
Evitando entrar no mérito daquilo que se denuncia – o que seria
sempre delicado e mais difícil – os meios de comunicação preferiram fazer
insinuações vergonhosas, de caráter moral, sobre a altura de seus honorários.
Desprezando o direito de defesa, tão usado no emprego da liberdade de imprensa,
inclusive para proteger o sigilo da fonte e até para evitar raras punições
judiciais, sem falar na campanha recente contra o Direito de Resposta,
assumiram a postura típica de porta-vozes de todo pensamento autoritário:
criminalizar o trabalho dos advogados.
Sem ruborizar, sem fazer nenhum tipo de auto avaliação, nossos
meios de comunicação estão consumando uma guinada histórica. Depois de décadas
de textos interesseiros e bajulatórios, de quem fingia desconhecimento de fatos
condenáveis que agora se denuncia em tom de afetada indignação, ampliam o coro
da denúncia e da crítica. Em sua mais recente expressão, querem impedir, de
qualquer maneira, civilizados acordos de leniência que podem salvar o que for
possível da 7ª economia do planeta.
Você pode ter a opinião que quiser sobre a Lava Jato, sobre os
acusados, sobre o juiz Sérgio Moro, sobre o PT e Lula, sobre as empreiteiras.
Só precisa saber que, na vida real de uma sociedade como a
nossa, aquilo que chamamos de verdade e mentira – e também culpa e inocência --
envolve construções sociais, produzidas pelo direito de falar e ouvir,
argumentar, apresentar sua versão dos fatos, seja num tribunal, seja perante
dezenas de milhões de pessoas.
Não estamos falando de realidades metafísicas, nem de entidades
espirituais. Mas de instituições que devem assegurar esses direitos.
Essa é a utilidade do caso Dreyfus, uma fraude que levou dez
anos para ser desmascarada, num país que a maioria das pessoas considera culto
e civilizado, onde nunca se pensou que a liberdade pudesse estar ameaçada.
Desprezada pelos principais jornais da época, que jamais deu
espaço para os argumentos da defesa, a família de Dreyfus decidiu investir uma
fortuna – sim, eles eram judeus muito ricos, e isso sempre foi usado em tom de
suspeita – no conhecimento da verdade.
Não se limitaram a contratar advogados, obviamente. Sem direito
a palavra, também contrataram um jornalista, Bernard Lazare, que fez as
primeiras investigações independentes sobre o caso, que permitiram chegar aos
primeiros sinais de inocência do capitão, já julgado e condenado.
As informações reunidas por Lazare permitiram – mas isso só
aconteceu quatro anos após o julgamento – a publicação do artigo Eu Acuso,
de Emile Zolah.
Tratado como exemplo heroico do jornalismo daqueles dias, na
vida real o Eu Acuso foi aquilo que o ministro José Roberto Barroso chamou de
ponto fora da curva.
Em vez de glorificado, como se faz hoje em coquetéis de fim de
curso de jornalismo, Zolah foi perseguido, processado e condenado à prisão.
Criado e estimulado pela maioria dos jornais da época, que
disputavam manchetes em tom popularesco para denunciar Dreyfus, num tempo em
que a palavra “judeu” era empregada sempre num tom criminal, o ambiente de
comoção social e ódio era tão desfavorável que, anos mais tarde, os
responsáveis pela sentença justificaram a decisão com um argumento esdrúxulo.
Alegaram que, se tivesse sido absolvido e pudesse andar pela rua, Zolah
possivelmente seria morto por um cidadão. (Sem confiar uma vírgula nesse
argumento, Zolah preferiu fugir do país, exilando-se na Inglaterra).
A utilidade de estudar os dois casos reside em aspectos
importantes. Ajuda a compreender o caráter nocivo da combinação de interesses
políticos com uma decisão judicial.
Numa conjuntura que tem lá sua semelhança com o Brasil de hoje,
embora apresente elementos muito diversos, vivia-se na França um período de
reação conservadora.
Uma década e meia após uma experiência revolucionária, a Comuna
de Paris, quando a capital do país foi assumida por um governo de anarquistas,
socialistas e marxistas, que expulsou a burguesia e tentou assumir o comando do
Estado, a França vivia um período de reconstrução da ordem. Desmoralizado por
várias derrotas, o Exército tentava recuperar prestígio e autoridade.
Ressabiada contra o alargamento da democracia para as camadas populares, a
velha aristocracia aliava-se ao reacionarismo católico para estimular a
intolerância e o preconceito, rejeitando vários progressos passados, o que
incluía estímulos ao anti semitismo que atingiu Dreyfus, após décadas de
convívio e várias medidas de integração e aceitação da diversidade estimuladas
pela Revolução de 1789.
Como a maioria dos franceses só pode descobrir uma década depois
da sentença judicial, o capitão Alfred Dreyfus era totalmente inocente da
acusação de envolvimento num esquema de roubo de segredos estratégicos do
Exército francês que eram oferecidos à Embaixada da Alemanha em Paris. Aquilo
que hoje se chama “caso Dreyfus” poderia ter-se limitado a um caso de erro
judicial, ainda que muito grave, caso as instituições próprias de um regime
democrático tivessem feito sua parte.
Afinal, um ano e meio depois da sentença contra Dreyfuss, a
verdade dos fatos já fora informada ao Estado Maior do Exército. Num ambiente
politizado e intolerante, a crise aberta pelo episódio colocou em risco a
sobrevivência da República, vítima de chantagem militar permanente contra
governos civis que não se dessem prova de submissão aos quartéis.
Sem apoio de provas, a denúncia contra Dreyfus se sustentava a
partir de indícios fabricadas, inclusive documentos falsos, que se destinavam a
encobrir um outro oficial, também capitão, que hoje é tido como o verdadeiro
traidor. Dreyfus foi sentenciado em dezembro de 1894. Cinco anos depois, num
segundo julgamento, seria condenado mais uma vez, a dez anos, num escândalo que
contrariava a maioria das evidências surgidas após a primeira condenação.
Conseguiu a liberdade, através de um indulto presidencial. Mas só teve a
inocência reconhecida dez anos depois da sentença, quando pode reintegrar-se ao
Exército, chegando a combater na Primeira Guerra Mundial.
Sem disposição para voltar atrás numa decisão errada e cumprir o
dever elementar de respeitar as provas e tomar decisões a partir delas, a
Justiça militar nunca assumiu o erro original. Protegeu a fraude até o fim. O
chefe da contra espionagem que tinha as informações confiáveis sobre Dreyfus
foi enviado para as colônias do Norte da África. O culpado foi solto.
Muitas pessoas acreditam que o condomínio entre jornais e a
Justiça, que estimula uma cobertura favorável em troca de vazamentos e
informações privilegiadas, tenha sido uma invenção da Operação Mãos Limpas
italiana, importada para o Brasil pelo juiz Sérgio Moro. Errado.
No final do século XIX a maioria dos jornais franceses estava
inteiramente cooptada pela decisão da Justiça contra Dreyfus, e foi cúmplice de
uma sequência de barbaridades. Suas manchetes cobraram a condenação com penas
duras e vergonhosas. Aplaudiram em tom de festa cívica quando ele foi degradado
perante à tropa, expulso do Exército e enviado para a Guiana, para ser mantido
a ferros, sob o sol do Equador. Depois de sustentar uma fraude, mantiveram a
mesma postura quando se tornou preciso apoiar uma farsa – aquela versão que
todos sabem que é mentirosa mas é mantida pelas partes, pois ninguém se dispõe
a assumir a culpa pelos erros cometidos.
Sem inocentar (nem culpar) ninguém com antecedência,
acho que
deu para entender do que
estamos falando no Brasil de 2016, certo?
PML.