FCO.LAMBERTO FONTES
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18/04/2016
Os antecedentes da tormenta
indicam por onde recomeçar
Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha
precisa ser reinventado com maior participação social.
O ciclo iniciado em 2002 negligenciou isso.
Um golpe não
começa na véspera; tampouco tem desdobramentos plenamente identificáveis na
manhã seguinte.
Uma derrota
progressista pode ser devastadora para o destino de uma nação, a sorte do seu
povo e a qualidade do seu desenvolvimento.
Mas a resistência
que engendra pode inaugurar um novo marco de consciência política.
Pode redefinir a
correlação de forças, as formas de luta e de organização e coloca-las num
patamar mais avançado, mas não menos abrangente.
Apesar dos votos
dedicados à família, a Deus e até a um torturador –Bolsonaro ofereceu sua
escolha a Brilhante Ustra e ao golpe de 64 -- a transparência da
história pulsou forte no Brasil nesta noite de 17 de abril de 2016.
Guardadas sóbrias
exceções, os que condenaram Dilma filiam-se a agendas e valores imiscíveis com
o mapa histórico que desponta da Revolução Francesa e fez dos direitos sociais
universais o guia generoso e libertário da humanidade.
A violência
conservadora, como ocorre em todos os golpes contra governos progressistas,
apunhalou a democracia para atingir o interesse popular.
Mais adiante
tentará aleijar a soberania nacional descartando-a como anacronismo populista.
A ética, a
responsabilidade fiscal, serviram de guarnição das aparências.
O golpe nasceu de
um ménage à trois entre a escória liderada por Cunha, o ódio inoculado pela
mídia na classe média e o plano de arrocho e entreguismo do PSDB.
O cinismo foi o
grande vencedor da jornada triste que banhou o país de lufadas adicionais de
incerteza e turgulência.
Votos decisivos ao
impeachment ‘por irresponsabilidade fiscal da Presidenta da República’ vieram
das bancadas –inclua-se a do PSDB— que patrocinaram as pautas bombas, estas sim
suficientes para quebrar a nação.
E não é necessário
desfiar o prontuário completo do operador Eduardo Cunha, para adicionar ao
cinismo a hipocrisia.
Hipócritas de
punhos de renda – jornalistas, políticos, intelectuais, ministros do STF —
assistiram a todo esse processo emprestando pertinência formal ao estupro
coletivo da democracia na arena das bestas-feras.
Por mérito, a
cusparada histórica do deputado Jean Wyllys num fascista que o insultara --
e que homenagearia um torturador e o golpe de 64 no seu voto pela derrubada da
Presidenta Dilma--, deveria ser estendida aos demais protagonistas do
espetáculo degradante.
Entre eles,
certamente a mídia.
Coube a ela
amalgamar o movimento regressivo de longas raízes históricas que se prepara
agora –afastado o obstáculo inicial-- para assaltar a Constituição Cidadã
naquilo que ela fez de melhor: legitimar os direitos sociais reprimidos
pela ditadura 24 anos antes da sua promulgação, em novembro de 1988.
Faz parte do jogo
de espelhos que Temer jure fidelidade ao Bolsa Família, a exemplo do que já
prometera ao mandato de Dilma, pouco meses atrás.
O fato é que
os acontecimentos em marcha vieram reafirmar a rigidez da fronteira onde acaba
a tolerância do dinheiro e do mercado com o projeto de construção de uma
sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta e principal referência
da luta pelo desenvolvimento no mundo ocidental.
‘A democracia
prometeu mais do que o capitalismo está disposto a conceder’, martelou
diuturnamente o jogral midiática, em todo o ciclo iniciado em 2002.
O alvo da reação
alérgica do mercado são os direitos sociais abrigados na Carta de 1988, a qual
o PT criticou na origem, pelas limitações (a questão agrária, uma das mais
graves), mas da qual se fez o mais fiel guardião quando chegou ao poder.
O mercado entendeu
que a crise econômica global –diante da qual o governo esgotou o fôlego dos contrapesos
fiscais em cinco anos de resistência -- abriu a oportunidade
para um acerto de contas com o ‘populismo constituinte de 1988’.
O senso de
oportunidade uniu a escória política, a mídia, o dinheiro grosso local e
internacional e os sem voto num pacto feito de sistemas de compensações
complementares.
Esse que agora se
desenha abusadamente aos olhos da sociedade, abençoado pelo jornalismo da
indignação seletiva.
Cunha terá sua
anistia, em troca de devolver o poder pleno ao mercado -- via corrupção
política da qual se acusa o PT.
O PSDB volta ao
poder sem precisar se submeter à urna.
O STF, depois de
se acoelhar de forma indecente na preservação do livre movimento de Cunha,
poderá falar grosso com Moro, e assim encerrar a Lava Jato.
A Chevron e a
Shell terão o pré-sal prometido por Serra e pelo PSDB; a Globo renovará sua
concessão facilmente a partir de 2018...
Vai por aí a
engrenagem posta em funcionamento, a partir deste domingo.
O ciclo em que o
golpismo tratará a democracia social como um estorvo do mercado está longe de
se encerrar com a conclusão do processo do impeachment.
A lambança, por
mais que gere uma euforia imediata nos mercados especulativos, não resolverá as
grandes pendências nacionais, emolduradas por um pano de fundo desafiador.
O mundo vive a
mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929.
Tudo o que foi
subtraído do Estado e do trabalho no período anterior à explosão as subprimes,
em 2008 –regulações, direitos, soberania etc, mostra agora a sua falta.
Desprovida de
alavancas contracíclicas a economia global não decola e nesse momento arrasta
nações em desenvolvimento para o ralo corrosivo da estagnação.
Sobram paradoxos.
O da superprodução
de capital fictício, em metástase especulativa, o mais evidente deles.
Mas
também a sua consequência estrutural: a anemia do investimento
e do emprego urbi et orbi.
Ficções de livre
comércio rondam esse cemitérios de nações.
Vendidas
como panacéia pelos carrascos dos direitos sociais, os chamados ATCs
prometem uma prosperidade que o sistema não pode entregar em
condições de contração global, quando o comércio forma um jogo de
soma zero, apenas transferindo desempenho de um lado para outro.
Igual
circularidade se observa na esfera do emprego
e naquela do ajuste fiscal, com o deslocamento
de passivos do setor privado para o Estado.
Golpistas falam
pelos cotovelos da 'irresponsabilidade fiscal petista'.
Ignoram que a
pressão adicional de gastos em uma conjuntura de queda vertical da
receita, elevou de 78% para 105% relação dívida pública/PIB nas
economias mais ricas desde 2008.
Em contrapartida,
a participação dos salários no PIB global recuou: hoje é 10% inferior à média
dos anos 80.
É essa a lição de
casa das ditas pedaladas, que os excelentíssimos senhores
deputados fingem não enxergar.
Da mesma forma que
os sábios dos mercados omitem a relação causal que estreitou
sobremaneira a margem de manobra de políticas associadas a projetos de
desenvolvimento com repartição de renda na América Latina.
O
Brasil avulta como o caso mais exposto justamente porque foi o
que mais longe chegou nesse processo.
Como atesta o
Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e 2013, passando
de 13,6% para 4,9% da população.
A queda nos preços
das commodities --decorrente da estagnação gerada pela desordem
neoliberal-- interrompeu esse processo, antes que o país
tivesse tempo de corrigir as distorções aí engendradas (sobrevalorização
cambial e desindustrialização, as mais graves delas).
Aberto o flanco, a
coalizão conservadora lançou-se ao golpe de Estado, com determinação virulenta que
estamos assistindo.
Não sem
antes ter imposto, através da mídia, o seu diagnóstico e a sua pauta -- respectivamente,
gastança e arrocho -- como referência dominante do debate sobre a crise
capitalista do nosso tempo.
Não é surpresa que
as ideias dominantes de uma época sejam as ideias das classes dominantes.
Desde 1846, quando
Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico nas páginas de ‘A ideologia
alemã’, o peso material das ideias ganhou o devido destaque na luta de classes.
No Brasil,graças
ao monopólio midiático, esse poder de agendamento tornou-se asfixiante.
Um conservadorismo
derrotado em 'quatro vezes consecutivas pelo voto popular desde 2002, transformou-o
na ferramenta decisiva de desconstrução de um adversário que não se guarneceu
de forma equivalente para esse enfrentamento.
O episódio das
ditas pedaladas evidenciou dificuldade de se defender do algoz, sem
romper o círculo de giz que ele traçara no chão.
Por que o governo hesitou
tanto, por exemplo, em convocar imediatamente uma rede nacional e explicar o
que as ditas 'pedaladas' representavam de fato?
Ou seja, que a
Caixa quitou programas sociais em dia, sendo ressarcida em seguida -- sem
alterar o orçamento, portanto.
Por que o governo
não escancarou imediatamente o golpismo intrínseco à ‘escandalização’ da
operação contábil corriqueira, com fins sociais irrepreensíveis? E por que
temeu confrontá-la com a derrama dos juros (8% do PIB) sobre o cofre do Estado –
escândalo que nenhum advogado do ajuste fiscal argui?
Em 757 dias úteis,
até o final de 2014, o saldo do Bolsa Família na CEF só ficou negativo em 72
dias.
O pagamento de
juros aos rentistas da dívida pública, no entanto, drenou o equivalente a mais
de 15% do PIB nesses quase dois anos, deslocando recurso fiscal escasso para os
cofres abarrotados da pátria financeira.
Os que golpearam
Dilma ‘em nome do povo’ neste domingo, avocariam esse mandato se o povo
verdadeiro tivesse sido alertado sobre as disputas fiscais efetivas no
caixa da República?
‘Governo é metade
realizações, metade ideia.
Por muito que
fizer, um governo que não trava a luta das ideias, sempre figurará aos olhos da
sociedade com quem fez muito pouco’, lembrou em recente viagem ao Brasil, o
vice presidente da Bolívia, Álvaro García Linera
A negligência com
a luta das ideias foi a tônica nos últimos 12 anos de avanços notáveis no plano
social, embarcados, todavia, em um economicismo que delegou às gondolas dos
supermercados a tarefa de traduzir tais conquistas em mudança na
correlação de forças.
A democracia,
portanto, não se tonificou de novos protagonistas, nem de novos
canais de participação.
Manteve-se refém
de um Congresso capaz de produzir e legitimar um déspota como Eduardo Cunha --
a quem coube, afinal, fazer o ajuste de contas entre as duas realidades.
O economista
Márcio Pochmann enxergou pioneiramente os riscos implícitos na assimetria entre
avanços econômicos e sociais desprovidos do respectivo cimento organizativo e
ideológico.
‘Cerca de 22
milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde 2003,’ lembrava ele já
em 2013, ‘mas não houve mudança na taxa de sindicalização no país: de
cada dez destes trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato.
O mesmo aconteceu
com os estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os
beneficiários do Minha Casa, Minha Vida’, espetou na sua lista dos antecedentes
da tormenta, que por fim eclodiria já na campanha de 2014, ainda assim
subestimada.
Marilena Chauí -- já
se observou neste espaço -- que sempre atuou na contracorrente da rendição
ideológica dos últimos anos, ensina que ‘a ideologia é o processo pelo qual as
ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais.
‘Esse fenômeno’,
diz a filósofa, ‘de manutenção (adoção) das ideias dominantes, mesmo quando se
está lutando contra a classe dominante, é o aspecto fundamental daquilo
que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante’.
Por isso ele dizia
que, sublinha a professora, se num determinado momento os trabalhadores de um
país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, por exemplo, a primeira
coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação (...) e elaborar uma ideia do nacional
que seja idêntica à de popular.
‘Precisam,
portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, uma outra, popular, que negue
a primeira’, sintetiza Chauí.
O ciclo golpeado
neste domingo esteve longe de proceder a essa mutação.
Está claro que um
sistema político que fica refém de Cunha e de sua matilha precisa ser
revitalizado com maior participação social.
Se quiser implodir
a resiliência golpista, as forças progressistas terão que se atirar de
forma unida nessa tarefa, dotando a luta pelo desenvolvimento de um projeto
social e democrático que a conduza.
Se o fizer, a
derrota do domingo poderá ser revertida muito mais cedo do que supõe a histeria
de um golpismo eufórico, mas incapaz de oferecer aos desafios brasileiros mais
do que a aposta dobrada em um neoliberalismo
mundialmente fracassado.