FCO.LAMBERTO FONTES
Trabalha em JORNALISMO INTERATIVO
Mora em ARAXÁ/MG
1 blogspot, + 1 página no facebook, + de 90 grupos no facebook, + twitter,
+ de 930 blogs e comunidades no google+, + de 420 conexões no LinkedIn.
512.750 visualizações em 41 meses
Atualizada em 17/05
Tragédia e farsa
em dois golpes
de Estado
Com a aprovação pelo Senado da admissibilidade do processo de
impeachment da presidente Dilma Rousseff, afastada até a conclusão do
julgamento do mérito, o país possui um novo presidente, Michel Temer, de
caráter interino, que já empossou seu ministério pluripartidário.
A democracia está de luto para os brasileiros que não legitimam
o modus operandi politicamente arbitrário que fundamenta a investidura
governamental desse presidente e da coalizão entre
PMDB-PSDB-DEM-PP-PPS-PR-PRB-PSB-PSD-PTB-PV, muito mais de direita que de
centro, devido à forma e ao conteúdo de suas ações e propostas.
Mais uma vez, a soberania do voto estorvou interesses
econômicos, políticos e ideológicos conservadores, havendo semelhanças, mas
também diferenças, com o ocorrido em 1964. Em ambas as situações, a crise
econômica pesou, mas agora o sistema representativo não foi abolido ou
regressivamente reformado.
Haverá eleições municipais em outubro desse ano e gerais em 2018
e o mesmo sistema partidário continua em vigor. Mas, casuisticamente,
decepou-se a cabeça presidencial para, a fórceps, dar-se à luz um mostrengo
governamental fantasiado com a indumentária da legalidade, embora
explicitamente desprovido da ficha limpa do chefe do Executivo e de vários
ministros, e buscando legitimidade, sobretudo, pela via da economia, como no
golpe de outrora.
“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda
como farsa”, diz a clássica frase. Em 1964, o golpe civil-militar, que depôs o
governo João Goulart, veio à história na crueza da tragédia, recorrendo
ilegalmente à força para se livrar da legitimidade fundada na democracia e,
enquanto fosse possível, reconstruí-la pelo crescimento econômico concentrador
de renda e promotor da desigualdade.
O golpe em curso, conduzido por uma ampla coalizão conservadora,
desinteressado – ao menos até aqui, e oxalá também no porvir – de mobilizar os
quartéis, abriu seu caminho de afastamento da presidente eleita pelo trato
discricionário da Constituição e de outros dispositivos legais, instrumentalizando
seletiva e politicamente o combate à corrupção, subvertendo direitos civis em
nome de ações jurídico-investigativas, criando, com respaldo de massa, um
inimigo público (o PT e suas lideranças) midiaticamente construído e, por fim,
produzindo uma maioria parlamentar, primeiro na Câmara e, agora, no Senado, que
politizou a lei do impeachment, forjando, arbitrariamente, um crime de
responsabilidade, no mínimo, altamente controverso e que coloca em risco o
reencontro da estabilidade política e social perdida ao longo da crise.
A economia, novamente, é a principal razão de fundo desse golpe
latino-americano do século XXI, mas a ela se chega por procedimentos jurídicos
e políticos hipócritas, disfarçados, por um lado, no combate à corrupção.
A motivação assentada na aliança entre o interesse econômico do
grande capital, nacional e estrangeiro, e o oportunismo político elitista,
indiferente à fidelidade à democracia, também se desnuda no argumento golpista
da superação da ingovernabilidade, situação que os próprios subversivos de
terno e gravata se esforçaram para produzir, por exemplo, com pautas-bomba e
vários tipos de veto ao governo objeto da ação orquestrada de deposição.
Com moralismo
hipócrita e militante e boicote à governabilidade foi sendo pavimentado o
acesso da ampla coalizão golpista ao Palácio do Planalto e à Esplanada dos
Ministérios.
A subversão da direita segue seu curso como se se tratasse da
condenação da presidente por efetivos crimes na política fiscal e de uma
fatalidade necessária devido às circunstâncias da crise. Suas lideranças se
dizem circunscritas à ordem institucional, quando se trata de um golpe de
Estado de novo tipo, sofisticado, executado sob o manto da Constituição,
respaldado nos representantes do povo e na mobilização popular, para se passar
por democrático, mas ardiloso e fraudulento. A imprensa internacional está
percebendo a farsa.
O golpe civil-militar resultou de uma conspiração, mas partiu
para a ação de modo explícito, chamou a si próprio de “revolução”, colocou
tanque nas ruas, rasgou a Constituição de 1946, decretou atos institucionais,
conferiu poderes autoritários aos novos donos do poder, definiu os crimes
contra a segurança nacional, cassou parlamentares, perseguiu, prendeu e
torturou inimigos internos, destinando muitos deles ao rol dos mortos e
desaparecidos, impôs o bipartidarismo, fechou o Congresso quando precisou etc.
Tudo isso foi executado com a lamentável bênção das bases
sociais do autoritarismo de então, como a CNBB (ora progressista), a OAB, o
empresariado, incluindo a imprensa mercantil, e a classe média. Além disso, a
aliança golpista civil-militar, costurada em contexto de Guerra Fria, teve o
respaldo estratégico do governo Kennedy-Johnson.
O golpe das oligarquias latino-americanas do século XXI, caso do
Brasil atual, implementa-se com várias ousadias: combate seletivo à corrupção,
aliança partidarizada entre Judiciário e mídia, fabricação de uma opinião
pública pró-impeachment, alavancagem de protestos de rua pelo poder econômico,
através da disponibilização às suas lideranças de vários tipos de recursos,
abusos jurídico-investigativos – como na implementação e uso da delação
premiada e escuta telefônica – e volatilização da lei do impeachment, para
considerar crime de responsabilidade práticas fiscais recorrentes no Brasil.
Ademais, a subversão de direita conta com a omissão ou
conivência da Suprema Corte, mas alguns de seus ministros, como Gilmar Mendes,
não hesitam em expor seu golpismo.
Está um curso o golpe da regressão do desenvolvimento
democrático, não necessariamente o retorno a um regime autoritário, mas a
diminuição do teor de democracia nas instituições públicas e nas relações
sociais, pois, além da seletividade partidarizada do Estado de Direito,
mobilizam-se subculturas políticas de intolerância e ódio contra adversários
ideológicos, preconceitos dirigidos a mulheres, negros, pobres e beneficiários
de programas sociais.
Criam-se fantasmas, também imaginados em 1964, como o comunismo,
hoje chamado de bolivarianismo ou petismo. Tal como há vários tipos
de regimes autoritários, há também várias democracias, passando pelas
semidemocracias. Os sistemas políticos podem aumentar ou diminuir seus níveis
de autoritarismo e democracia. Na ditadura brasileira, por exemplo, ocorreu o
“golpe dentro do golpe”, que promoveu aumento do autoritarismo.
A qualidade das crenças e ações das elites políticas e o
respaldo social ao golpe mostram como os valores políticos das lideranças e
cidadãos são importantes para o desenvolvimento ou subdesenvolvimento da
democracia, que não deveria ser concebida pelas ciências sociais como um mero
regime, e sim como um tipo de sociedade, a sociedade democrática, erguida sobre
uma cultura democrática.
Trata-se também do retrocesso nas políticas públicas
social-desenvolvimentistas. A ponte para o futuro do PMDB conduz, na verdade, à
retomada do passado neoliberal, dos tempos de Fernando Collor de Mello e,
sobretudo, Fernando Henrique Cardoso, com recessão ou crescimento baixo,
desemprego, juros elevadíssimos, imensa captura da política fiscal pelos
credores da dívida pública, privatizações e aumento da dependência nacional em
relação ao capital estrangeiro, ávido por aprofundar sua presença no mercado
nacional e por botar as mãos nos recursos naturais do Brasil, a começar pelo
pré-sal.
Por fim, o caráter de farsa do golpe atual – retrocesso
democrático sofisticado, operado ao arrepio da ordem legal, pretenso berço
esplêndido de União Nacional de um suposto gigante despertado, mas, na verdade,
carente congênito de legitimidade – não exclui sua dimensão trágica.
Ou não será
tragédia o resultado da mobilização de um conjunto de farsas? Combate à
corrupção com corruptos e fichas sujas? Diminuição do clientelismo no sistema
político com o partido que mais o encarna comandando a caneta do Estado?
Democracia com mobilização de comportamentos políticos de tipo fascista nas
ruas e em líderes institucionais, empenhados em criminalizar o maior partido de
trabalhadores surgido no mundo desde o Segundo Pós-guerra? Justiça cega, mas
que, na realidade, enxerga e tem partido? União Nacional, mas contra os
direitos populares e a serviço da plutocracia brasileira e internacional?
Talvez pior do que o golpe nu e cru, o golpe atual – por ser
malicioso e enganador, construído entre contradições que vão dos anseios dos
privilegiados, avessos aos direitos de cidadania, pela tradicional
hierarquização em classes sociais, responsável pela delimitação de papéis e
lugares distintos e estáticos aos brasileiros, passando pela mobilização de
eleitores vestidos de verde e amarelo nas ruas, desejando políticas sociais –
seja mais munido, ao menos no curto prazo, do poder de iludir, ao passo que o
militarismo impôs o medo das baionetas prontamente nos trabalhadores.
Mas não é uma tragédia anunciada acreditar que políticas orientadas
para o mercado possam ser o caminho capaz de elevar a renda média e o padrão de
vida do conjunto da nação? Justo no Brasil o neoliberalismo vai vingar, um país
emergente, profundamente desigual, com uma economia altamente oligopolizada,
pouco competitiva, carente de um modelo de desenvolvimento nacional
independente da poupança externa e de um Estado republicano que implemente
políticas de bem-estar e direitos de cidadania?
Basta olhar para o que a austeridade fiscal e monetária e os
interesses mesquinhos, que norteiam a lógica dos agentes de mercado, estão
propiciando em matéria de recessão, desemprego, afora o arrocho que está por
vir, para se ter uma ideia do tempo obscuro e regressivo ao qual a reação
conservadora contra a revolução democrática está conduzindo o país.
Mas a resistência progressista está viva e não aceita a farsa do
governo interino de Temer, como não aceitou a tragédia do golpe de 1964. Desde
as eleições de 2014, os golpistas escolheram o caminho da polarização política.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de
Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das
relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da
Universidade de Oxford